A palavra mecenato vem do Império Romano, de antes de Cristo,
e teve origem em Caio Mecenas, que como conselheiro do imperador Otávio Augusto
começou a influenciá-lo a investir nos artistas, de alguma forma patrocinando
algumas obras. No Renascimento, do século XV para XVI, o modelo de arte começou
a ser uma retomada do classicismo da antiga Grécia, da antiga Roma, e começou-se
a usar o conceito de mecenas. Só que não mais apenas em relação à família real,
podendo ser executado por nobres, alta burguesia ou pela igreja. Essa última, a
Igreja, foi mecenas de muitos artistas.
O pintor Hieronymus Bosch é um exemplo. Autor do quadro “O Jardim
das delícias terrenas” (disseram que era inicialmente patrocinado pela igreja,
apesar de seu conteúdo um tanto inadequado para os padrões morais dessa entidade)
antecipou em séculos o surrealismo. Se compararmos suas pinturas às de Salvador
Dali, podemos concluir que o segundo pode ter se influenciado pela obra do primeiro.
Um papa foi quem encomendou a pintura da Capela Sistina a Michelangelo. Empregar
o artista era uma forma de patrocinar sua obra. Será que Michelangelo deixou de
ser ele, deixou de fazer as coisas nas quais acreditava, enquanto contratado
pela igreja? Ou será que ele conseguiu levar o artista que ele era para compor
qualquer que fosse a encomenda?
Quando um artista vai fazer algo encomendado por alguém, para
um grande grupo de televisão, por exemplo, é comum se dizer “ele se vendeu”. Mas
a verdade é que a classe artística sempre dependeu de certo financiamento para
fazer sua obra. Talvez o único mercado em que isso não aconteça seja nos Estados
Unidos, porque no restante do mundo você sempre vai depender de uma lei de
incentivo, de um patrocínio, de uma fonte de sustento. Para nós escritores,
nossa produção não tem tanto custo, mas para produzir cinema, teatro e outros
gêneros precisa-se de muito investimento.
Diz-se que as obras “1984” e “A revolução dos Bichos” teriam
sido patrocinadas pelo ocidente, como uma propaganda anticomunista. Mas a
palavra “revolução” apareceu apenas na tradução do título para o português,
porque no original era “Animal Farm”, ou seja, “A Fazenda dos Bichos”. “1984”,
que inspirou o atual programa de TV “Big Brother”, retratava inicialmente “O
Estado vigiando as pessoas”. George Orwell
era de esquerda. Ele não acreditava nos regimes totalitários. Então, quando ele
escreve, ele está criticando esses regimes e não propriamente os regimes de
esquerda. De acordo com o biógrafo Jeff Meyers, uma gaúcha chamada Mabel Lilian
Sinclair Fierz, nascida no Brasil, mas filha de ingleses, teria bancado George
Orwell durante algum tempo. Ela teria sido mecenas dele.
Foto de Carlos Barreto |
Quantos artistas precisam fazer coisas por encomenda? São
muitos. Dalton Trumbo, que escreveu o roteiro de “Spartacus”, de “A Princesa e
o Plebeu”, entre outros, foi identificado na época do macartismo como um
possível comunista, teve de escrever vários roteiros e assinar com pseudônimos
para continuar trabalhando. Quem trouxe de volta seu nome ao mercado do cinema
foi Kirk Douglas, que insistiu que ele assinasse o roteiro de Spartacus. Então,
ele foi contratado para fazer esse roteiro de imenso sucesso.
Muitas vezes o artista trabalha por encomenda, mas não se
torna um artista menor por isso, ele vai levar a arte dele para onde ele for. A
maioria deles não se nega a esse papel, a não ser que o que lhe estejam pedindo
fira alguma norma ética ou ideológica.
Lennon e McCartney foram livres para escrever o que queriam.
Mas em 1967, quando haveria a primeira transmissão via satélite para todos os países
do mundo, cada país deveria fazer uma exibição de algo que fosse próprio dele.
Então, a Inglaterra escolheu os Beatles, que estavam no auge naquele momento. Tendo
aceitado o desafio, Lennon compôs
“All we need is love”. Talvez ele não tivesse escrito essa música, se
não tivesse recebido a encomenda. Paul já estava em carreira solo quando foi
perguntado se queria escrever a música tema do próximo filme de 007, que ia se
chamar “Live and Let Die”. A música, do mesmo título, foi indicada ao Oscar e,
embora não tenha ganho, tornou-se grande sucesso.
Quando se fala em trilha sonora, não se consegue imaginar “Star
Wars” sem a trilha do John Williams, criada especialmente para a série. A música
composta para Psicose de Hitchcock, tornou-se parte do próprio filme.
Alguns jingles encomendados por grandes empresas, para apresentar
seus produtos em comerciais de TV, marcam a gente, ficam na memória de quem os
ouviu para sempre. Renato Teixeira, autor de Romaria, fez o jingle do comercial
da bala de leite Kids e do Ortopé. Esses jingles sustentaram a carreira de compositor
dele. “Marcas do que se foi”, composta por Ruy Maurity, foi uma encomenda do Governo
Federal, como mensagem de final de ano. Ricardo Corte Real ficou famoso por
criar um jingle de papel higiênico. A maioria desses compositores aceitaram o
desafio de fazer algo, com uma duração apenas de 30 segundos, que marcasse as
pessoas. Eles conseguiram fazer isso. Um desafio semelhante a quem escreve um
Haicai, por exemplo, que com pouquíssimas palavras precisa dizer muito e tocar
o leitor.
Quando um escritor escreve um prefácio, um texto de orelha é por encomenda. O fato é que muitas vezes a gente é chamado a escrever algo, que se não fosse a pedido de alguém, talvez não tivesse sido criado. Isso é muitas vezes um desafio que pode funcionar ou não. O próprio Chico Buarque pegou encomendas que não conseguiu entregar.
De qualquer forma, a questão é, o trabalho autoral e o feito por encomenda são necessariamente coisas opostas ou a gente consegue trabalhar bem dos dois jeitos?
O que dá certo e o que não dá
Foto de Angelo Macedo |
Nós que somos escritores, recorremos a designers para fazer
nossas capas e ilustrações. Muitas vezes
as capas partem de um quadro. Por exemplo, a Margaret Cruz, Meg Cross, como
gosta de ser conhecida, participante do encontro, pintou a tela encomendada
para virar capa do livro, “Cadeira de Mulher”.
A Mona Lisa é um retrato de uma mulher chamada Lisa
Gherardini, esposa de um rico comerciante florentino. A pintura foi encomendada
a Leonardo da Vinci pelo marido de Lisa e foi concluída em 1506. Desde então,
ela se tornou uma das obras de arte mais famosas e emblemáticas do mundo.
O tema de abertura "Irmãos Coragem", de Nonato
Buzar e Paulinho Tapajós, um dos mais marcantes da primeira fase das
telenovelas brasileiras, foi cantado por Jair Rodrigues. A música foi feita por
encomenda para a novela, e aparece em duas versões, a primeira, instrumental,
foi usada na abertura até o capítulo 12, quando acontece uma virada da trama,
passando, então, a ser ouvida a gravação na voz de Jair Rodrigues.
Ainda falando-se dessa novela, a maioria das gravações foram
feitas especialmente para ela, prática comum nas primeiras trilhas. O cantor e
compositor Tim Maia teve sua primeira gravação em disco, com "João
Coragem", que na verdade é a mesma "Padre Cícero", do primeiro
álbum solo dele. A música foi adaptada e mudada a letra para servir ao
personagem. Maysa gravou "Nosso Caminho", de Fred Falcão e Arnoldo
Medeiros. Denise Emmer, filha de Janete Clair, compôs "Coroado" e
cantou ao lado de Marcus Pitter.
Foi Guto Graça Mello quem insistiu para que os temas de
novelas não fossem feitos todos por encomenda a um ou dois compositores, mas
também pescados entre as novidades das gravadoras. E foi ele a quem Boni
ordenou montar, de um dia para o outro, a trilha de “Pecado capital” (1975). Antes
disso, ele foi o jovem violonista e arranjador que, depois de dar uma resposta
atravessada a Boni em uma reunião, acabou sendo escalado para compor o tema do
programa que a Globo lançaria em 1973: o “Fantástico”, tema esse que só saiu em
cima da hora, quando ele estava no berçário com a filha recém-nascida.
O tema de Pecado Capital acabou sendo composto por Paulinho
da Viola em apenas um dia. Após saber que a última cena da novela seria com o
Carlão de Francisco Cuoco sendo alvejado por uma bala e o dinheiro voando de
sua maleta, Paulinho chegou à conclusão que “Dinheiro na mão é vendaval” e criou
o inesquecível tema.
"Luiza", de Tom Jobim, foi composta a pedido do
autor Gilberto Braga, para a abertura da novela Brilhante, de 1981.
Outro exemplo de trabalho por encomenda citado por uma das
autoras presente no encontro de escritores foi o Livro “Filha de Circe”, de
Simone Rodrigues, no gênero Hot pedido pela editora, que tinha interesse em criar
um selo desse gênero. Segundo a autora, ela recorreu à fantasia misturada com
hot e deu certo.
O mesmo sucesso muitas vezes não se concretiza quando se
trata de esculturas feitas em homenagem a pessoas famosas. Muitas, feitas para
eternizar famosos jogadores de futebol como Cristiano Ronaldo, Lionel Messi,
Maradona e vários outros, acabaram virando motivo de piada. A estátua da atriz Lucille
Ball em Nova York foi apelidada de "Scary Lucy" devido à sua
aparência assustadora. O artista até pediu desculpas e uma nova estátua foi
feita. A de Michael Jackson, em Londres, foi tão controversa que acabou sendo
removida após dois anos.
Podemos concluir que a encomenda bem feita, para a
pessoa certa, terá um resultado à altura do seu criador.
Obs.: Texto criado com base no que foi debatido durante o XXVI Encontro de Escritores e Leitores, na noite de 23/08/2024, no Centro do Professorado Paulista – CPP. Mediação de César Magalhães Borges, coordenado por mim (Fátima Gilioli) e por Guilhermina Helfstein, responsável pela iniciativa.
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