domingo, 26 de novembro de 2023

Revisionismos: O valor de cada tempo

 

Partindo-se do princípio de que revisionismo é o ato de reanalisar algo do passado, de forma a interpretá-lo com princípios atuais, alguns têm a opinião de que, quando falamos de obra literária, de obra de arte, esse ato não faria nenhum sentindo.

A obra de arte é e sempre deverá ser o que era quando foi criada. Não é para preservar a sua autenticidade que se procura proteger um quadro, uma escultura, da ação do tempo, mantendo-os em locais em que sofram o mínimo possível de ataque ou interferência externa? Ou então, quando a obra sofre algum dano ou desgaste, faz-se um esforço para restaurá-la, para que fique nas mesmas condições e aparência originais? Tudo para se preservar a obra.

Talvez o único que possa “revisá-la” seja seu autor, apesar de que, após muito tempo ter se passado desde a criação, represente lançar um novo olhar para ela e uma consequente transformação. Nesse caso, talvez ela esteja sendo destruída e servindo como matéria-prima para um novo produto.

Não há porque se substituir palavras na obra de Monteiro Lobato, ou mesmo “cancelar” um livro seu, por ter sido usada, na época da escrita, palavra que atualmente não é considerada politicamente correta. O melhor não seria utilizar notas de rodapé para explicar os termos e períodos de sua criação, destacando-se as divergências em relação à época atual?

O tempo muda padrões, subverte ordens, desmistifica conceitos, condena atos do passado, cria novas regras e estabelece novos valores. O que é beleza hoje para nós, não era, por exemplo, na era do renascimento. Dizem que no século XVII, ter os dentes cariados era símbolo de status, porque significava acesso ao açúcar, produto caro e escasso na época. Algo semelhante, mas no sentido inverso, acontecia com o bronzeamento. Ter a pele queimada do sol significava trabalho de campo e a pele alva, nobreza e status superior. Atualmente cultua-se a pele bronzeada, de forma saudável.

Com o surgimento da fotografia, houve uma mudança de padrão nas artes plásticas, especialmente na pintura, que passa a não ser mais utilizada para registrar a realidade, e a ser mais uma expressão da realidade, que pode até ser distorcida para se criar um efeito visual interessante e até mais valoroso. Um dos exemplos dessa mudança foi o impressionismo, que saindo daquela cultura mais acadêmica, foi ridicularizado na época, mas que com o passar do tempo, foi adquirindo grande valor. Vemos isso com as obras de Monet ou do pós-impressionista Van Gogh, que não vendeu um quadro em vida, mas que atualmente têm valor inestimável. Após a morte de Shakespeare, sua obra caiu no esquecimento, só vindo a ser recuperada já nos séculos XIX e XX. Tudo isso acontece porque a sociedade vai se revisando.

Vivemos na época do cancelamento, que acontece muitas vezes com obras, artistas, que viveram num tempo diferente do nosso. O mesmo acontece com personagens da história. Um caso recente foi o fogo ateado em uma estátua do Borba Gato, um bandeirante, cuja atuação atualmente está associada à exploração e não ao desbravamento, como anteriormente. Mas atear fogo seria o melhor caminho? Além de ser uma atitude que remete ao período de inquisição, não estaríamos querendo apagá-lo da história, privando gerações futuras de conhecer nosso passado? Não seria o caso de apenas mudar a sua localização para um museu, que trouxesse detalhes do tempo e de sua ação na história do país?

Na educação, em sala de aula, não é negável que o uso de obras que contenham palavras e expressões que não sejam atualmente aceitas, deve ser feito com muito cuidado e atenção. Explicar detalhadamente o contexto de sua criação se faz necessário, para que os mais novos entendam e conheçam realidades distintas.

Vivemos também uma política de cancelamento de caráter ideológico, em que ao mesmo tempo um lado incendeia uma estátua e o outro condena, por exemplo, os escritos de Paulo Freire, autor que, aliás, foi revisor de sua própria obra. Sempre que se procura cancelar algo por ideologia, com alguma razão ou não, estaremos agindo de maneira contrária aos preceitos democráticos.

Cada coisa no seu tempo. Que toda obra seja preservada e contextualizada!

“O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir” (Mário de Andrade, poeta e crítico literário brasileiro).

*O texto acima foi criado com base no que foi discutido no XXII Encontro de Escritores e Leitores, cujo tema foi Revisionismos: O valor de cada tempo. Em 24/11/2023, no espaço de eventos do Alameda Café, Guarulhos/SP.

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