A obra de arte é e sempre deverá ser o que era quando foi
criada. Não é para preservar a sua autenticidade que se procura proteger um
quadro, uma escultura, da ação do tempo, mantendo-os em locais em que sofram o
mínimo possível de ataque ou interferência externa? Ou então, quando a obra
sofre algum dano ou desgaste, faz-se um esforço para restaurá-la, para que
fique nas mesmas condições e aparência originais? Tudo para se preservar a
obra.
Talvez o único que possa “revisá-la” seja seu autor, apesar
de que, após muito tempo ter se passado desde a criação, represente lançar um
novo olhar para ela e uma consequente transformação. Nesse caso, talvez ela
esteja sendo destruída e servindo como matéria-prima para um novo produto.
Não há porque se substituir palavras na obra de Monteiro
Lobato, ou mesmo “cancelar” um livro seu, por ter sido usada, na época da
escrita, palavra que atualmente não é considerada politicamente correta. O
melhor não seria utilizar notas de rodapé para explicar os termos e períodos de
sua criação, destacando-se as divergências em relação à época atual?
O tempo muda padrões, subverte ordens, desmistifica
conceitos, condena atos do passado, cria novas regras e estabelece novos
valores. O que é beleza hoje para nós, não era, por exemplo, na era do
renascimento. Dizem que no século XVII, ter os dentes cariados era símbolo de
status, porque significava acesso ao açúcar, produto caro e escasso na época. Algo
semelhante, mas no sentido inverso, acontecia com o bronzeamento. Ter a pele
queimada do sol significava trabalho de campo e a pele alva, nobreza e status
superior. Atualmente cultua-se a pele bronzeada, de forma saudável.
Com o surgimento da fotografia, houve uma mudança de padrão
nas artes plásticas, especialmente na pintura, que passa a não ser mais utilizada
para registrar a realidade, e a ser mais uma expressão da realidade, que pode até
ser distorcida para se criar um efeito visual interessante e até mais valoroso.
Um dos exemplos dessa mudança foi o impressionismo, que saindo daquela cultura
mais acadêmica, foi ridicularizado na época, mas que com o passar do tempo, foi
adquirindo grande valor. Vemos isso com as obras de Monet ou do
pós-impressionista Van Gogh, que não vendeu um quadro em vida, mas que atualmente
têm valor inestimável. Após a morte de Shakespeare, sua obra caiu no
esquecimento, só vindo a ser recuperada já nos séculos XIX e XX. Tudo isso
acontece porque a sociedade vai se revisando.
Vivemos na época do cancelamento, que acontece muitas vezes com
obras, artistas, que viveram num tempo diferente do nosso. O mesmo acontece com
personagens da história. Um caso recente foi o fogo ateado em uma estátua do
Borba Gato, um bandeirante, cuja atuação atualmente está associada à exploração
e não ao desbravamento, como anteriormente. Mas atear fogo seria o melhor
caminho? Além de ser uma atitude que remete ao período de inquisição, não estaríamos
querendo apagá-lo da história, privando gerações futuras de conhecer nosso
passado? Não seria o caso de apenas mudar a sua localização para um museu, que
trouxesse detalhes do tempo e de sua ação na história do país?
Na educação, em sala de aula, não é negável que o uso de obras
que contenham palavras e expressões que não sejam atualmente aceitas, deve ser
feito com muito cuidado e atenção. Explicar detalhadamente o contexto de sua
criação se faz necessário, para que os mais novos entendam e conheçam realidades
distintas.
Vivemos também uma política de cancelamento de caráter
ideológico, em que ao mesmo tempo um lado incendeia uma estátua e o outro condena,
por exemplo, os escritos de Paulo Freire, autor que, aliás, foi revisor de sua própria
obra. Sempre que se procura cancelar algo por ideologia, com alguma razão ou não,
estaremos agindo de maneira contrária aos preceitos democráticos.
Cada coisa no seu tempo. Que toda obra seja preservada e
contextualizada!
“O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir”
(Mário de Andrade, poeta e crítico literário brasileiro).
*O texto acima foi criado com base no que foi discutido no
XXII Encontro de Escritores e Leitores, cujo tema foi Revisionismos: O valor de
cada tempo. Em 24/11/2023, no espaço de eventos do Alameda Café, Guarulhos/SP.
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#literatura
Boa reflexão, Fátima. A boa arte se mantém aberta a visões e a revisões.
ResponderExcluirVerdade, Anderson, mas sem cancelamento...rs
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