sábado, 20 de abril de 2024

Direitos Autorais e Domínio Público: quando a vontade do autor já não conta mais








    Quando, em janeiro deste ano, toda a obra de Graciliano Ramos caiu em domínio público, imediatamente foi anunciada a publicação de um livro inédito seu, “Os filhos da Coruja”. Trata-se de um poema, manuscrito pelo autor, com pseudônimo de J. Calisto. Pela vontade dele e pela disposição de seus herdeiros, isso jamais aconteceria, pois, o autor de Vidas Secas tinha deixado instruções explícitas para que escritos nessas condições não fossem editados após sua morte.

    Depois que um autor morre, os direitos autorais sobre suas obras passam para seus herdeiros num prazo de 70 anos. Após esse período, de acordo com a legislação brasileira, todo seu acervo cai em “Domínio Público”. Isso significa que a partir daí qualquer pessoa ou empresa pode se utilizar de parte de suas criações ou da totalidade delas para fazer o que quiser, republicar, transformar a escrita para teatro ou audiovisual, tomar como base ou fonte de inspiração para novas criações etc. Há uma grande liberdade a partir daí para se utilizar todo material que estiver disponível da forma que convier a cada um.

    Há todo um projeto em curso, liderado pela Companhia das Letras, com um pesquisador convidado a prospectar obras inéditas de Graciliano Ramos, morto em 1953, que possam ser publicadas, desconsiderando a vontade do escritor, levando-se em conta apenas o grande interesse público pelos escritos de um dos maiores autores da literatura brasileira.

    A lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1988, que regula os direitos autorais no Brasil, protege os direitos dos autores de obras literárias, artísticas e científicas. Ela assegura a eles o direito de controlar a forma como suas obras são usadas ou divulgadas. Também garante o direito de receber uma compensação pelo uso de seu trabalho.

    Ainda em vida, qualquer escritor que ceda os direitos de uma obra para uma editora, deverá fazer isso através de um contrato com prazo determinado ou definitivo, parcial ou total. Pode, por exemplo, ser de 3 ou de 5 anos. Nesse caso, depois disso, os direitos retornam para o autor, se for essa a sua vontade.

    A tendência inicial de um autor é de que ele queira ter direito total sobre sua criação, que tenha o domínio sobre suas obras, que possa fazer com que chegue a seu público da forma que quiser, sendo remunerado por isso ou não, de acordo com sua expressa vontade. Esse direito já começa a ser exercido logo que ele opta por determinada linguagem ou gênero, seja ela escrita, encenada, filmada etc.

    Há muitos que já escrevem um livro imaginando sua obra sendo transformada em filme ou série. No caso dos poetas, imaginam um poema seu sendo musicado. Normalmente o escritor participa do processo de roteirização de sua obra para o palco de um teatro, ou para as telas do cinema, televisão ou serviço de streaming, compatíveis com diversas formas de transmissão digitais.

    Um caso que vem na contramão dessa tendência é o de Gabriel García Márquez que, embora fosse um incentivador de criações audiovisuais, sempre recusou propostas de transformar uma de suas maiores criações, “Cem anos de Solidão”, em filme. Ele dizia querer se comunicar diretamente com os leitores através das letras, que assim poderiam criar os personagens em sua mente como quisessem, sem que a imagem de qualquer ator lhes fosse imposta.

    Ainda que não tenham caído em domínio público, os próprios herdeiros de Gabo desconsideraram sua opinião a esse respeito e venderam os direitos do livro para a NetFlix. O filme já tem trailer disponível e está para estrear em breve na plataforma.

    Uma segunda determinação do autor colombiano também foi descumprida pelos detentores atuais de seus direitos, no mês passado, quando foi publicado o romance “Em agosto nos vemos”, obra inédita que ele havia dito que “não prestava” e que “deveria ser destruída”. Alegando que ele havia sido muito severo em sua avaliação sobre o livro, os herdeiros novamente o contrariaram “em nome do prazer dos leitores”. Quando se consulta o título na plataforma da Amazon, após uma breve sinopse, aparece a seguinte frase: “Um presente inesperado do Prêmio Nobel de Literatura para o mundo”. Se foi contra a sua vontade, não foi um presente dele e sim de seus herdeiros.

    Como leitores podemos comemorar que o editor de Franz Kafka não tenha levado a sério sua determinação expressa de queimar seus manuscritos após sua morte. Do contrário, nós nunca teríamos tido a oportunidade de ler “O processo”, “O Castelo” e “Carta ao Pai”. Teria sido uma jogada de marketing póstuma? Nunca saberemos.

    A verdade é que sempre que estamos na posição de leitores e não de escritores, torcemos para que qualquer trabalho inédito de um autor que admiramos, e que já não está mais entre nós, seja publicado, para que possamos ter acesso a ele novamente. Além disso, cada vez que se traz uma obra do passado com uma nova linguagem, um novo formato, uma “cara nova”, levamos esse rico conteúdo a jovens, a pessoas que provavelmente nem tiveram a oportunidade de conhecer o autor e ou sequer saibam quão grandioso ele foi.

    Numa análise mais profunda, chegamos à conclusão que a partir do momento que uma obra é criada e exposta, seu autor não perde imediatamente os direitos autorais, mas perde o controle sobre o que ele produziu. Algo similar ao que acontece com nossos filhos, que criamos para o mundo.

    Tanto “Os filhos da Coruja” como “Em agosto nos vemos” já estão em minha lista para aquisição em breve, bem como não vejo a hora de assistir na NetFlix à versão nas telas de meu livro predileto, “Cem anos de solidão”. Graciliano Ramos e Gabriel García Márquez que me perdoem de onde estiverem. Meu desejo de conhece-las é, em primeiro lugar, em nome da profunda admiração que sinto por eles.

Dicas de artes comentadas durante o bate-papo:

Livros: Os filhos da Coruja – Graciliano Ramos; Em agosto nos vemos – Gabriel García Márquez; O processo, O Castelo e Carta ao Pai – Franz Kafka; Dom Casmurro – Machado de Assis

Filmes:

Adaptações de peças de Shakespeare para o cinema feitas por Kenneth Branagh (A primeira foi Henry V - 1989, seguida de Much Ado About Nothing - 1993, Hamlet - 1996, Love's Labour Lost - 2000 e As You Like It - 2006).

#livros

#literatura

#arte

#audio-visual

#direitosautorais

#domíniopúblico

Obs.: Texto criado com base em bate-papo por ocasião do XXIV Encontro de Escritores e Leitores, acontecido em 19/04/2024, no CME Adamastor.

terça-feira, 5 de março de 2024

IA... até onde pode ir na Literatura e nas demais Artes?

    


    Embora a IA seja uma tecnologia relativamente recente em termos de aprimoramento e utilização prática em maior escala, essa pauta já vem sendo discutida há muito tempo, pensando-se na tecnologia como algo que provoca desemprego em vários ramos, inclusive nas artes. Imaginemos o que aconteceu com os escribas e copistas da idade média, quando a quantidade de volumes de um livro publicado dependia da mão humana para ser multiplicada. Após a invenção da imprensa, todos ficaram desempregados.

    Tal qual o cinema, que usa uma câmera e produz 24 fotogramas por segundo para, através da sua justaposição, provocar a ilusão do movimento, da mesma forma acontece com as animações. Até um passado bem recente esses desenhos eram feitos a mão. Imaginemos quantos desenhistas eram necessários para fazer essas tantas imagens e quantos deles devem ter sido dispensados a partir da chegada do computador.

    Portanto, as atividades artísticas sempre foram atropeladas pelo uso da tecnologia. Filmes do século XX precisavam de muitos figurantes para gravar uma cena que demandava um grande número de pessoas, como o funeral do Gandhi, por exemplo, gravado em 1982, que utilizou 300 mil pessoas fazendo figuração. Em 1995, menos de 10 anos depois, Mel Gibson lançou o filme Coração Valente e utilizou 1500 soldados do governo Irlandês para figurar nas cenas de batalhas, que, já através da computação gráfica, se transformaram em milhões.

    Na música, na década de 1960, foi lançado o sintetizador Moog, que pode emular sons de vários instrumentos e começou a haver manifestações dos sindicatos dos músicos para que não se usasse esse recurso nas gravações de discos. Mas isso seria nadar contra a corrente, pois, também havia sons eletrônicos que uma orquestra não produziria. A primeira banda de rock a usar o Moog foram Os Monkees em 1967. E na esteira deles, várias outras entraram, como os Beatles, The Who, Pink Floyd. Músicos como Paul McCartney começaram a gravar seus discos em estúdio, sozinhos, utilizando o teclado e deixando de empregar uma série de músicos.

    O passado parece se repetir, pois, em 2023 aconteceu uma greve de roteiristas em Hollywood para impedir que os roteiros fossem escritos por inteligência artificial.

    Mas o uso da tecnologia não é um problema em si, só se torna problemático quando esbarra em questões éticas. Quando se forja um vídeo com uma pessoa fazendo ou dizendo algo que a incrimine e o apresenta como verdade, as consequências podem ser avassaladoras. Já se fala em criar uma canção “inédita” feita por John Lennon, Kurt Cobain, mas será que a IA consegue de fato “fazer” uma nova canção, ou simplesmente estabelecer alguns padrões e reciclar partes de suas obras, criando um boneco de Frankenstein? Da mesma forma, já se tem a intenção de lançar um “novo” livro da Agatha Christie.

    Copiar, plagiar, fazer suas as palavras de outro não é exatamente uma coisa nova na humanidade. A inteligência artificial só nos trouxe, nesses casos, uma nova forma de plagio.

    Por outro lado, com a Inteligência Artificial foi possível recuperar uma música inédita de John Lennon que estava em fita K7, consequentemente em baixa qualidade para os padrões atuais, e incluí-la em uma faixa inédita lançada ano passado chamada Now and Them. Papirus encontrados numa cidade da Roma antiga, Herculano, destruída pelo vulcão Vesúvio, foram recentemente resgatados, escaneados e decifrados através de inteligência artificial, pois seu estado impossibilitava que fossem manuseados.

    A verdade é que estamos bem no início ainda de todo esse processo de IA. Não sabemos ainda para onde vai.

    Tivemos recentemente um prêmio Jabuti sendo retirado de ilustrações de uma nova edição de Frankenstein por ter sido constatado o uso de IA pelo designer. O autor se defendeu dizendo que já era comum esse uso por ilustradores. A questão é até onde podemos considerar a IA uma ferramenta cujo uso não ultrapasse os limites da razoabilidade, não interfira na criatividade de quem a usa. Quais seriam esses limites? A IA pode dar uma ideia para um escritor, que posteriormente desenvolvendo sua obra a partir dela a terá como coautora de sua criação.

   No cinema há como gravar apenas uma vez o ator simulando várias expressões e, com esse material, a IA vai colocando a expressão necessária para determinada cena, eliminando a necessidade de que o ator atue e grave cada cena individualmente.

    Devemos ver a IA como uma ferramenta para elaborar ainda mais nossa produção criativa. Para a IA funcionar há necessidade de um direcionamento humano. Precisa haver uma excelência para se dar os comandos. Quando não há a execução criativa humana, apenas a extração de conteúdo de uma máquina, falta ironia nos textos poéticos, falta a questão das entrelinhas, do não dito, das coisas mais subjetivas que o autor extrai de si e coloca em sua obra. Quem analisou as criações literárias da IA diz que o que falta exatamente é o elemento humano. Daria para perceber que não é uma pessoa que escreveu. Há um estado de arte dentro do tecnológico, mas o autor pode carregar a sua sensibilidade, desde que haja um equilíbrio.

    A inteligência artificial não é inteligente. O sublime da arte está na criatividade humana. Vamos ser mais criativos! Tecnologia como instrumento, nós no comando!

Dicas de filmes que surgiram durante as discussões:

Ela

Encontros e desencontros

Bom dia, Vietnam

Trumbo

Spartacus

Blade Runner

O Homem Bicentenário

O Carteiro e o Poeta

Um robô em curto circuito

Grandes olhos

Get back beatles (documentário)

 

Obs.: Texto criado a partir das discussões em torno do tema no XXIII Encontro de Escritores e Leitores, que aconteceu on line, pelo Google Meet em 16/02/2024.

#inteligênciaartificial

#artes

#literatura

#tecnologia

#criaçãoartística

domingo, 26 de novembro de 2023

Revisionismos: O valor de cada tempo

 

Partindo-se do princípio de que revisionismo é o ato de reanalisar algo do passado, de forma a interpretá-lo com princípios atuais, alguns têm a opinião de que, quando falamos de obra literária, de obra de arte, esse ato não faria nenhum sentindo.

A obra de arte é e sempre deverá ser o que era quando foi criada. Não é para preservar a sua autenticidade que se procura proteger um quadro, uma escultura, da ação do tempo, mantendo-os em locais em que sofram o mínimo possível de ataque ou interferência externa? Ou então, quando a obra sofre algum dano ou desgaste, faz-se um esforço para restaurá-la, para que fique nas mesmas condições e aparência originais? Tudo para se preservar a obra.

Talvez o único que possa “revisá-la” seja seu autor, apesar de que, após muito tempo ter se passado desde a criação, represente lançar um novo olhar para ela e uma consequente transformação. Nesse caso, talvez ela esteja sendo destruída e servindo como matéria-prima para um novo produto.

Não há porque se substituir palavras na obra de Monteiro Lobato, ou mesmo “cancelar” um livro seu, por ter sido usada, na época da escrita, palavra que atualmente não é considerada politicamente correta. O melhor não seria utilizar notas de rodapé para explicar os termos e períodos de sua criação, destacando-se as divergências em relação à época atual?

O tempo muda padrões, subverte ordens, desmistifica conceitos, condena atos do passado, cria novas regras e estabelece novos valores. O que é beleza hoje para nós, não era, por exemplo, na era do renascimento. Dizem que no século XVII, ter os dentes cariados era símbolo de status, porque significava acesso ao açúcar, produto caro e escasso na época. Algo semelhante, mas no sentido inverso, acontecia com o bronzeamento. Ter a pele queimada do sol significava trabalho de campo e a pele alva, nobreza e status superior. Atualmente cultua-se a pele bronzeada, de forma saudável.

Com o surgimento da fotografia, houve uma mudança de padrão nas artes plásticas, especialmente na pintura, que passa a não ser mais utilizada para registrar a realidade, e a ser mais uma expressão da realidade, que pode até ser distorcida para se criar um efeito visual interessante e até mais valoroso. Um dos exemplos dessa mudança foi o impressionismo, que saindo daquela cultura mais acadêmica, foi ridicularizado na época, mas que com o passar do tempo, foi adquirindo grande valor. Vemos isso com as obras de Monet ou do pós-impressionista Van Gogh, que não vendeu um quadro em vida, mas que atualmente têm valor inestimável. Após a morte de Shakespeare, sua obra caiu no esquecimento, só vindo a ser recuperada já nos séculos XIX e XX. Tudo isso acontece porque a sociedade vai se revisando.

Vivemos na época do cancelamento, que acontece muitas vezes com obras, artistas, que viveram num tempo diferente do nosso. O mesmo acontece com personagens da história. Um caso recente foi o fogo ateado em uma estátua do Borba Gato, um bandeirante, cuja atuação atualmente está associada à exploração e não ao desbravamento, como anteriormente. Mas atear fogo seria o melhor caminho? Além de ser uma atitude que remete ao período de inquisição, não estaríamos querendo apagá-lo da história, privando gerações futuras de conhecer nosso passado? Não seria o caso de apenas mudar a sua localização para um museu, que trouxesse detalhes do tempo e de sua ação na história do país?

Na educação, em sala de aula, não é negável que o uso de obras que contenham palavras e expressões que não sejam atualmente aceitas, deve ser feito com muito cuidado e atenção. Explicar detalhadamente o contexto de sua criação se faz necessário, para que os mais novos entendam e conheçam realidades distintas.

Vivemos também uma política de cancelamento de caráter ideológico, em que ao mesmo tempo um lado incendeia uma estátua e o outro condena, por exemplo, os escritos de Paulo Freire, autor que, aliás, foi revisor de sua própria obra. Sempre que se procura cancelar algo por ideologia, com alguma razão ou não, estaremos agindo de maneira contrária aos preceitos democráticos.

Cada coisa no seu tempo. Que toda obra seja preservada e contextualizada!

“O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir” (Mário de Andrade, poeta e crítico literário brasileiro).

*O texto acima foi criado com base no que foi discutido no XXII Encontro de Escritores e Leitores, cujo tema foi Revisionismos: O valor de cada tempo. Em 24/11/2023, no espaço de eventos do Alameda Café, Guarulhos/SP.

#revisionismo #arte #cultura #história #ideologia #literatura



quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Modismos Sociais e Estéticos na Literatura

 



    A moda é um conjunto de opiniões, gostos, assim como modos de agir, viver e sentir coletivos. O modismo tem a ver com aceitação, com a necessidade de ser aceito. Os primeiros modismos que podemos citar em processos de escrita são aqueles configurados pelo uso de palavras ou expressões da “moda”. Nós vivemos em uma cultura viva, em que o idioma também é vivo, em que novas palavras são constantemente incorporadas ao vocabulário ou usadas em sentido diferente do original. A questão é que alguns termos acabam se tornando esvaziados ou se tornam clichês, de uso forçado. Nós escritores precisamos ficar atentos a eles, assimilar o que achamos importante ser assimilado, mas nem sempre nos render a imposições da linguagem. Palavras como “resiliência”, “ressignificar”, por exemplo, tornaram-se de uso frequente. O mesmo acontece com termos como “não é sobre... é sobre...”, “ato de resistência” etc.

   Se a pessoa não usa esses termos, parece não ser “in”, parece estar “out”. A utilização exagerada deles pode nos levar a uma vala comum de linguagem, em que a palavra passa a não dizer aquilo que ela deveria dizer.

    Quando a primeira pessoa definiu uma mulher como “guerreira”, deve ter soado bem, mas quando 500 mil pessoas começam a falar dessa mesma forma a respeito de alguém, acaba-se desvalorizando a metáfora. Começamos a pensar: será que não haveria outra palavra para usar nesse caso? Usa-se “foco” demais, o que aconteceu com a palavra “concentração”? Nós a perdemos de vez? Usa-se demais “empoderamento”, será que queremos realmente que alguém em especial tenha poder e outros não? Qual o sentido real dessa palavra? Não seria “autonomia” um termo melhor para o que queremos expressar?

    Tornou-se moda também que a mulher escreva sobre seus anseios, as lutas em nome das mulheres guerreiras, mas isso não pode ser uma imposição para uma mulher escritora. Nada impede que ela escreva sobre o que quiser, mesmo que não esteja levantando uma bandeira.

  Já o termo “narrativa” foi roubado da literatura para ser usado na política, com o significado de versão, com carácter ideológico e polarizado: “a narrativa da esquerda…”, “a narrativa da extrema direita” etc.

    O gênero romantismo está associado à subjetividade, ao nacionalismo, um termo ligado ao ideal libertário, mas deixou de ser entendido assim atualmente. As pessoas não sabem o que é esse romantismo. O próprio romantismo virou moda, tornou-se clichê.

    Quando aderimos a esses clichês, nos tornamos mais um produto de prateleira, feitos em série, do que escritores autênticos. Por outro lado, existe uma necessidade da natureza humana de se agregar. Ninguém quer viver sozinho. Porém quando começamos a ficar seriados demais, parecemos estar atentando contra a nossa singularidade.

    Os modismos aparecem nos meios de comunicação, nas redes sociais. Distopias, haicais inexpressivos, um amontoado de palavras agrupadas para atender a “moda”, sem aprofundamento na origem desse tipo de poema, sem estudo sobre o que levou a essa forma de expressão, sobre as influências ao longo da sua história. 

    Autoficção, um termo da moda, já não existe desde sempre?  Nas cavernas os homens não estavam fazendo autoficção? Qual o autor que não está presente em sua obra? 

   Algo que está em moda são as oficinas de escrita criativa. Para que tenham sucesso e ajudem realmente alguém a se aprimorar na arte da escrita dependerá muito de quem será o formador. Se coloca regras demais, rigidez demais, vai criando uma tendência que pode não ser boa. Lembrando Drummond, se o poeta encontra uma pedra no meio do caminho e senta nela, ele nunca mais vai sair de lá. A fórmula pode ser um tremendo obstáculo para o autor. Devemos fugir dela. Ela pode servir para um poema, mas será para uma só vez .

    Ainda sobre o Haicai, sobre sua fórmula 5-7-5, Bashô fala que se tem de aprender todas as regras, para depois descartá-las. Depois de pegar a essência, o autor abandona a rigidez e inventa seu caminho.

  Outro exemplo de modismo, foi a literatura engajada que vimos muito durante a pandemia.  Parecia um modismo porque as pessoas estavam sempre falando das mesmas coisas. Nunca a serviço de um espanto, de um impacto poético ou de um exercício puramente lírico. O exercício da poíeses, de criar mesmo, sem estar em função da conjuntura. Mesmo assim, não podemos deixar de reconhecer a importância de tais exercícios poéticos por conta de demarcar uma situação vivida. De datar aquilo que passamos, ainda que tenha se tornado clichê.

    Porém devemos ter em mente que sempre que atendemos demais a apelos que só dizem respeito ao presente, corremos o risco de ter algo que não faça tanto sentido no futuro. Com a crônica pode até funcionar, mas outros gêneros que ficam datados demais, ficam apenas como um retrato daquele momento.

     Mas o que, então, deve-se esperar de um bom texto, um bom conto, um bom poema? Se não provoca espanto, se não tem revelação, nada que demonstre algum trabalho poético, de lirismo, não é verdadeiro. O mesmo com as Aldravias, seis palavras, uma em cima da outra, precisam ter algo de novo, de especial, produzir um resultado criativo. Um miniconto deve ter uma narrativa concisa, mas a maioria não chega a isso. Uma frase não é um miniconto. 

    A moda é boa pra quem cria. Mas é péssima para quem a segue. Quem cria, se notabiliza, ganha dinheiro, fica famoso, quem segue está sempre um passo atrás, nunca vai chegar lá. A moda é inimiga da originalidade. Nada contra quem busca o que está “vendendo” e opta por produzir o que está na moda. É um direito de cada um. Mas se não é o que queremos, devemos procurar a nossa própria voz para produzir a escrita do nosso jeito, tentando não nos render aos modismos. Percorrer a estrada não trilhada pode fazer toda a diferença, como no poema “A estrada não trilhada”, de Robert Frost.

    Ainda que optemos por um tema da moda, o importante é encontrar um jeito original de se falar sobre ele, seja na poesia ou na prosa. Quando se faz um poema, seja qual for o assunto, o que vai prevalecer é a demanda da lírica e sua essência. Além disso, uma narrativa tem que causar um impacto no leitor. O problema não é o tema e sim a necessidade de fugir do lugar comum.

  Os temas em geral são os mesmos que vêm sendo tratados historicamente de forma universal. O fato está na capacidade de se expressar de forma genuína, autoral, única. Quando se recorre ao uso do termo da moda, não se está escrevendo com as suas palavras. Para você ser genuíno em sua criação artística, precisa se autoconhecer. E é aí que está a maturidade do artista que precisa conhecer a si mesmo para trazer uma expressão que às vezes é coletiva, um tema aberto a todos, de uma forma genuína. Ao mesmo tempo não dá para rompermos com a língua existente. Não dá para se falar com um formalismo antigo, ninguém vai entender. Precisa ser compreendido. Essa busca de se fazer compreendido, mas de forma original é o desafio maior do autor.

    A própria indústria, o próprio comércio, nos impulsionam a seguir a moda. Não se escapa muito de ser um pouco como nossos pais, já cantava Elis Regina. Estamos sendo impelidos a viver uma vida coletiva. Mas não podemos abrir mão da singularidade.

    Ressalvando-se o direito das pessoas se expressarem, mesmo que não seja de uma forma genuína, autêntica, que possamos nos esforçar para criar à nossa maneira. O modismo não resolve a arte.

 

Dica de Filmes:

Mary Shelley

Sociedade dos Poetas mortos

 

Dica de Livros:

Madame Bovary - Gustave Flaubert. 

Os sofrimentos do Jovem Werther - Johann Wolfgang von Goethe

 

Obs.: O texto acima resume o resultado das discussões durante o XXI Encontro de Escritores e Leitores realizado em 22/09/2023 pelo Google Meet. 

#literatura

#moda

#poesia

#arte

#escritacriativa

domingo, 2 de julho de 2023

VANGUARDAS: A ESTÉTICA DA RUPTURA

 


Quando o termo vanguarda (do francês, avant-gard), o que marcha na frente, portanto, de origem militar, foi associado às artes, no início do século XX, foi para identificar aqueles que “marchavam” na frente, que iam abrindo caminhos, a partir de uma ruptura de conceitos, dogmas, formas, linguagens etc.

Entretanto, se formos analisar em termos de ruptura, podemos dizer que uma das mais importantes é de bem antes, a partir do Renascimento, em que há um rompimento com o teocentrismo e a adoção do antropocentrismo, passando o homem a ser o centro do universo.

Na pintura e na escultura começa-se a se preocupar com a escala, com a profundidade, com os detalhes, uma busca pela perfeição. Depois com o Impressionismo já se abandona a necessidade de um quadro imitar a realidade. Passa-se a valorizar mais o Sol, que revela as cores.

Outro período importante de ruptura veio pelo Romantismo, não aquele ao qual nos remete a palavra, entre duas pessoas, mas aquele diretamente relacionado a grandes revoluções sociais, à revolução francesa e todo o conceito de liberdade, igualdade e fraternidade.

Na literatura, o Simbolismo é o primeiro movimento que começa a romper com a lógica, a abandonar o pensamento científico europeu.

E é de rompimento em rompimento que vamos vendo o desenrolar dos movimentos de vanguarda, Expressionismo, Cubismo, Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo. Se pensarmos na pintura abstrata do Modernismo, a poesia visual, a literatura Beatnik, a psicodelia, o Tropicalismo, tudo isso chegou para se opor a algo anterior, para fazer diferente do que vinha sendo feito.

Sem a pretensão de rever aqui em detalhes todos os movimentos classificados como de vanguarda e suas características relacionadas a rupturas, a principal proposta do encontro foi a de tentar detectar algum movimento da atualidade que tenha as mesmas características vanguardistas.

Depois de tanta fragmentação, da modernidade líquida de Bauman, talvez não haja mais o que romper, o que dissolver, numa época em que tudo é líquido e volátil. Talvez seja um movimento de surgimento, de criação e não de quebra de algo já existente.

Na tentativa de apontar obras mais recentes como trabalhos de vanguarda (ou os que mais se aproximam do conceito de ruptura que caracteriza a vanguarda), tivemos dificuldades de fazê-lo na literatura, mas chegamos a filmes como "Matrix", "Show de Truman" e "Dogville", que trataram de temas relacionados à interferência do mundo virtual em nossa suposta realidade. Os diretores conseguiram na época algo novo ali... "Dogville", por sua vez, desafiou por fazer um filme com a linguagem do teatro mesclada com a da própria literatura. Sem uma análise profunda, não podemos afirmar que foram os primeiros a fazer isso, condição que seria necessária para que os considerássemos de vanguarda, mas são, sem dúvida, filmes que ousaram...

E se fôssemos analisar mais a fundo os trabalhos mais atuais, certamente encontraríamos alguns classificados pela crítica como inovadores.  Mas até que ponto?

E você? Tem se deparado com alguma criação literária, seriado, filme, arte em que tenha observado uma ruptura, que possa ser denominada uma “nova vanguarda”?

*texto elaborado com base nas discussões em torno do tema vanguarda no XX Encontro de Escritores e Leitores, dia 30/06/2023, das 19h às 21h, no Centro Britânico, em Guarulhos. Como sempre, a mediação foi de César Magalhaes Borges, com a presença de Rogério Britto, Guilhermina Helfstein, Alba Bela, Janete Brito, Talita Salvador, Valmir de Souza, Luka Magalhaes e Fátima Gilioli.

#vanguarda #arte #literatura #ruptura #escrita #escritores #leitores #livros 

 


terça-feira, 2 de maio de 2023

Verossimilhança: a Invenção de Realidades

 


    Como declara Fernando Pessoa em seu poema Autopsicografia, o poeta é um fingidor. Na verdade, não apenas o poeta, bem como todo artista que cria uma obra fictícia, seja ela escrita, encenada, declamada, pintada, esculpida etc. Mas exatamente por ser fingimento, ela precisa parecer verdadeira. Precisa ser coerente dentro do sistema proposto pelo autor.

   Uma obra é a invenção de um mundo de quatro paredes. Se uma dessas paredes é “quebrada”, ou seja, se algo no cenário, no diálogo, na letra ..., não é verossímil perante o que foi criado, se um acontecimento não parece possível de acordo com a sequência estabelecida, isso pode interferir, negativamente, na integridade da obra.

   Como se sente um telespectador atento que assiste a um filme cuja história se passa no século XVIII e se depara com um tênis All Star (item de vestuário que só foi inventado em 1971) no armário da rainha? Se antes acreditava no que via, sente-se imediatamente deslocado da época encenada e trazido abruptamente para um passado já não tão distante – quarta parede quebrada.

   Como o leitor poderia acreditar em uma história supostamente acontecida e narrada em 1916, se uma das personagens aparece dirigindo um Monza (lançado nos anos 80), ou pior, se uma das cenas se passa na porta de uma sala de TV (eletroeletrônico estreado oficialmente em 1926), ou ainda alguém é descrito atendendo a um celular (invenção de 1973)?

   A lista de incoerências encontradas por aí é extensa. Pode ser em um poema, um romance, um filme, uma letra de música...

  Não importa quão longe foi o autor em sua ficção. Basta que ela seja coerente.  “O planeta dos Macacos”, por exemplo, foi uma criação sem furos e amarrada até o final. Realmente, macacos não falam, e seres humanos não são escravizados por eles. Mas naquele universo, isso faz todo o sentido.

  Como exemplos de coerência e verossimilhança na literatura podemos citar Machado de Assis, no conto "A Cartomante", e Guimarães Rosa, no romance "Grande Sertão: Veredas". A estrutura narrativa nessas obras prende o leitor e o leva a acreditar em um desfecho que se mostra surpreendente, sem perder a coerência interna.

  Portanto, a verossimilhança acontece em uma obra, por essência, bem resolvida, independentemente de seu período, de Homero aos dias atuais. Pois essa verdade interna de qualquer obra é algo que o autor deve cuidar, zelar, para dar realidade, originalidade à sua invenção: se narrativa, poema ou drama.

  Há casos, porém, em que acontece quebra intencional da “quarta parede”. Como no humor, nonsense... exemplicado pelos “The Monkees” e Monty Python. Houve essa quebra também em “A Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen e em Macunaíma, de Mario de Andrade. "O fabuloso destino de Amélie Poulain”, do diretor Jean-Pierre Jeunet, mostra a personagem Amélie em suas fantasias, quebrando a quarta parede de uma maneira surreal e incrível. O mesmo acontece no livro "Memórias Póstumas de Brás Cubas" cujo o personagem central é um "defunto-autor" que conversa com o leitor, enquanto narra sua vida. E há também a pintura de René Magritte "A Traição das Imagens", demostrando que a representação de algo (o cachimbo) não é necessariamente esse algo... Como na música do Djavan sobre o universo e dinossauros – uma “viagem” de estilo.

 

Obs.: Artigo criado com base nas discussões em torno do tema do XIX Encontro de Escritores e Leitores - "Verossimilhança, a invenção de realidades", pelo Google Meet, 28/04/2023.

 

#verossimilhança; #ficção; #quartaparede; #arte; #poesia; #música; #cinema; #literatura

 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O bom samaritano

“Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois foram embora e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele caminho; quando viu o homem, passou adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu e passou adiante pelo outro lado. Mas um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e teve compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal, e o levou a uma pensão, onde cuidou dele”. Lucas 10,30-34.

Um gay ia caminhando pela avenida Paulista, quando foi abordado e espancado por uma gang de SkinHeads. Depois que ele estava desacordado de tanto apanhar, foram embora e o deixaram ali, quase morrendo. Um pastor que passava pela mesma calçada, viu e o ignorou, seguindo adiante, a caminho do culto. Um político também passou e desviou do caminho. Afinal, nem era época de eleição. Um morador de rua o viu e teve pena dele. Jogou água em seu rosto, e achando o celular em seu bolso, o usou para chamar uma ambulância.

Um torcedor do Palmeiras, saindo do Allianz Parque, foi cercado por torcedores de um time rival e seriamente agredido com socos e pontapés. Abandonado quase sem vida em uma praça, foi avistado por um advogado, que não quis perder tempo em socorrê-lo, pois tinha uma importante audiência no fórum. Uma bela mulher chocou-se com aquele corpo todo ensanguentado, fez uma foto para postar no Instagram e seguiu para o salão para fazer as unhas. Foi socorrido por um Corintiano que vestia a camisa do seu time, que tinha acabado de ganhar de aniversário.

No parágrafo acima, apenas substitua o palmeirense por uma pessoa de direita e o corintiano por uma de esquerda. Depois faça o inverso. Coloque o de esquerda no lugar do palmeirense e o de direita no lugar do corintiano. Tudo é possível.

Uma mulher negra estava sendo impedida de descer pelo elevador social de um prédio. A moradora que a impedia disse que o seu lugar era no de serviço. Alguns ocupantes do elevador ficaram inertes, alegando pressa para descer. Um jovem influencer fez um vídeo na mesma hora e o postou, fornecendo à vítima material para processar a criminosa por injúria racial.

Uma moradora de rua foi espancada por seguranças, quando tentava furtar dois pacotes de carne seca de um supermercado. Algumas pessoas que viram a cena em vídeo a acusaram de ser uma ladra qualquer e apoiaram os homens que haviam batido nela. Muitos se apiedaram de sua situação e da violência sofrida.

Existem muitas e muitas versões para essa parábola. Qual você conhece?

 

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