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Mea Maxima Culpa

 

D

o alto do cais Rosália contempla o mar com um misto de tristeza e desconforto. Faz parte de sua rotina começar o dia dessa forma. Espera um dia despertar desse pesadelo terrível e voltar a visualizar águas puras e cristalinas, como em sua infância havia presenciado. As ondas batem insistentemente contra as estacas da estrutura, mas junto delas, uma infinidade de objetos faz o mesmo movimento. Garrafas plásticas, sacolas, pneus e outros sólidos, na maioria das vezes irreconhecíveis, parecem querer invadir todo seu espaço, procurando avançar cada vez mais ferozmente sobre o ambiente onde está o homem, parecendo conhecer sua responsabilidade por estarem ali à deriva.

                  Em 2040, ela com seus 56 anos, ainda não se conforma com o aumento da poluição nos mares e rios, com aquele volume exagerado de materiais descartados irregularmente que vêm sabe-se lá de onde, sabe-se lá de que tempo. É certo que eles tomaram conta das águas, habitando em maior número do que peixes e seres vivos aquelas que haviam sido no princípio o berço da humanidade. Atualmente estavam mais para túmulo de dejetos.

                 Apesar de sua insatisfação, como sempre, ela pede perdão a Deus por terem os homens colaborado e permitido que a situação chegasse a esse ponto. No fundo também se sente culpada por no passado não ter adotado hábitos sustentáveis em seu dia a dia. Enquanto algumas poucas pessoas iam ao supermercado com suas sacolas retornáveis, ela fazia uso das sacolas plásticas, trazia sempre para casa uma infinidade delas. Comprava com frequência alimentos processados e embalados em plástico e isopor. Não separava o lixo orgânico do reciclável e nem se preocupava com o descarte irregular de pilhas e resíduos eletrônicos.

             Achava um exagero todas aquelas medidas, ditadas por pessoas denominadas “ecochatos”. Malucos que viviam espalhando terror de que o homem estava destruindo o mundo. Que bobagem, pensava quando jovem. O mundo era tão grande! Como ela, sozinha, com seus hábitos, poderia destruí-lo?

           A resposta era tão simples. Como não tinha conseguido enxergar? A questão é que não eram apenas os seus hábitos e sim o de grande parte dos humanos no mundo todo. Bilhões e bilhões de pessoas, todas cegas e insensíveis ao perigo iminente.

             Agora, com toda aquela poluição no mar, nos rios e no ar, com a devastação de metade de toda a floresta Amazônica e de muitas outras pelo mundo afora e com todas as consequências que esse descaso havia provocado para a humanidade, com toda a escassez de água e alimento a que o homem estava submetido, só havia um caminho. Esse caminho era o de enfrentar a sua sina e buscar meios de sobreviver e sobrevivendo, procurar reverter todo aquele cenário maldito.

Conto inspirado na distopia #EsseFuturoNão! Rosália não é persongem do livro, mas poderia ser. Se gostar, curte, compartilhe. Gostando ou não, comente.

#distopias #literatura #contos

Comentários

  1. Olá, Fátima! Assim que comecei a ler, me lembrei do seu livro #Essefuturonão. Parabéns!

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  2. Obrigada, Meire. Essa é a ideia. Você é D+!

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  3. Olá, Fátima! Gostei muito do conto, parabéns! É um cenário de terror que pode, a qualquer momento, sair da ficção e invadir de vez a realidade, caso o homem não se conscientize e adote hábitos saudáveis, sustentáveis e respeitosos com relação ao meio ambiente...é como dizem: "não existe lado de fora do planeta, tudo é lado de dentro!"

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    1. Sim, Nil, você resumiu bem. Estou tentando direcionar meus trabalhos para essa conscientização. Muito obrigada por comentar!

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  4. Muito boa a reflexão que o conto traz assim como o livro. Temos que nos conscientizar e pensar mais no que estamos fazendo com o nosso planeta. Parabéns!

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    1. Obrigada, Talita. Sei o quanto você se engaja nessa causa também. Sigamos com nosso trabalho nessa direção!

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  5. Bom texto Fátima e uma reflexão importante sobre o meio ambiente que está muito ausente hoje no debate política, mas que deve retornar a ser assunto relevante no ano de 2021, parabéns👏👏👏

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  6. Sem dúvida. Espero mesmo provocar essa reflexão. Obrigada!

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