domingo, 17 de novembro de 2019

Que dor é essa?

“Que povo é esse, que ao som do atabaque e da batida do tambor, canta e dança seu lamento e sua dor?” Logo de início esse mantra que abriu a missa de hoje pela manhã na comunidade católica que frequento já me emocionou.  Ele foi declamado por uma jovem no momento em que a procissão de entrada invocava o dia da consciência negra, oficialmente comemorado no próximo dia 20. De tão envolvida com a cena, acabei omitindo do vídeo a primeira parte, embora o que esteja postando aqui também esteja carregado de extrema beleza.

Ao ouvir o mantra e contemplar aquelas pessoas exteriormente ornamentadas com motivos afros e internamente carregando o legado da raça negra, com um misto de orgulho e sofrimento passados de geração em geração, não pude deixar de pensar no livro que acabei de ler. ”Kindred, laços de sangue”, de Octavia E. Butler (*). Enredo que nos dilacera a alma, não é apenas simples ficção, imaginada, inventada, é retrato da história acontecida no mundo todo em variadas épocas. É ferida que ainda dói nos dias de hoje.

A emoção persiste no decorrer da cerimônia, quando o iluminado padre Paulinho divide seu espaço na homolia e dá voz ao pastor Donizete, da igreja Vineyard , que brilhantemente dá sua contribuição à celebração, num claro gesto de oposição aos tempos de intolerância em que vivemos. É assim que ele nos lembra de uma passagem da Bíblia, em Atos dos Apóstolos, onde fica evidente que mãos de figuras negras enviaram o apóstolo Paulo para sua vida de pregador da palavra de Deus. Também nos lembra de que nosso país foi quase que todo construído com mãos negras, que foi baseado em costumes e rituais negros. Ancestralidade que não temos como refutar.

Aqueles que não concordam com o dia da Consciência Negra talvez não saibam quais são essas dores que esse povo carrega. A dor da escravidão, da submissão, da humilhação, da mutilação, da tortura física e psicológica, da segregação. Atualmente a dor da discriminação, da falta de oportunidades escancarada nas pesquisas, nos índices de mortes por bala perdida, ou por bala encontrada, da predominância da cor branca nas mais altas esferas do poder, nas faculdades, nas empresas, nas profissões de destaque e em contrapartida da gritante e extravagante preponderância do negro nas favelas, nas prisões, nos assassinatos, nas abordagens policiais.

Sim, é preciso ter consciência, é preciso ter vergonha desse cenário, é preciso que todos carreguem essa mesma dor e que cantem e toquem o mesmo tambor.


(*) Livro de ficção em que uma jovem negra do século XX passa a fazer viagens no tempo ao século XIX e a reviver a escravidão e os dilemas raciais de ontem e de hoje.


#consciêncianegra #missa #homilia #discriminaçãoracial #preconceito



10 comentários:

  1. Infelizmente essa polarização política que contamina Grande parte da população brasileira faz com que a consciência, seja trocada pelo instinto animal, que está longe da racionalidade do ser humano, belo texto Fátima parabéns.

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    1. Verdade, Carlos. Felizmente é apenas parte da população. Não devemos perder a esperança no ser humano. Rezemos para que a maioria recobre a consciência!

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  2. Mais humanidade.
    Parabéns Fátima pelo excelente texto.

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    1. Obrigada, Mora. Acabei não entrando no blog e só vi sua resposta hoje. Fico feliz que a maioria compreende e compartilha com meu sentimento.

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  3. É triste saber que as pessoas ainda medem o valor do outro por sua cor, orientação sexual ou onde vive e não por suas atitudes! Parabéns pelo texto!

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    1. Pois é, Talita. Surpreendente e preocupante. Obrigada! (Desculpe-me também por só ter lido o comentário hoje.

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  4. Parabéns pelo texto Fátima. Eu fico indignada que em meio a tanto desenvolvimento ainda tenha tanta intolerância e que infelizmente com este novo e medíocre governo, vem tomando força. A Luta e frequente, mas tenho certeza que venceremos. O bem vai vencer o mal!

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    1. Obrigada! Desculpe-me só ter lido o comentário agora. Ficou parado na caixa de moderação. Sim, o bem vai vencer o mal!

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  5. Querida Fátima paz e bem!
    Cheguei por acaso ao seu texto e ao terminar de lê-lo floresceu em mim a esperança que esses dias sombrios tem tentado roubar, lhe agradeço pelas gentis e motivadoras palavras!
    E se me permitir gostaria que fizesse um pequena retificação, já não sou mais presbiteriano hoje eu pastoreio à igreja Vineyard em Campinas.

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    1. Desculpe-me, pastor, mas o seu comentário ficou preso na caixa de moderação e só o li agora. Já retifiquei o texto como pediu. Estou muito feliz porque o senhor leu e teve a gentileza de comentar. Foram muitas as visualizações e os comentários de indignação. Isso é um bom sinal! Obrigada!

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