Pular para o conteúdo principal

O chefe


Toda essa implicância de Bolsonaro com Mandetta me fez lembrar um antigo chefe. Quem conhece minha trajetória profissional sabe que comecei a trabalhar muito cedo, aos 14 anos e que, portanto, durante as quase quatro décadas em que tive a carteira assinada, foram muitos os chefes aos quais me subordinei. Desta forma, inútil tentar descobrir de quem estarei falando.
Logo no início já percebi que nossa relação não seria fácil. Ele era uma pessoa aparentemente tímida, carrancuda, mais novo do que eu e com pouca experiência na área. Tinha sido alçado ao cargo por obra do destino, mas era muito competente em sua função de origem e demonstrava disposição, capacidade para aprender e se desenvolver em sua nova posição (nesse caso, nada a ver com o chefe da nação). Isso o qualificava e sinalizava que a escolha da empresa havia sido acertada. Cá para nós, tal qual para o presidente, faltava-lhe humildade, mas esse atributo nunca foi muito requisitado para cargos de liderança.
Não demorou muito para eu perceber que tinha um problema. Ele não ia com a minha cara e não fazia a mínima questão de me esconder isso. Eu nunca entendi bem o porquê. Desconfiava que o meu conhecimento amplo em boa parte das rotinas que passaram a ser de sua responsabilidade, as quais eram novas para ele, o incomodavam um pouco. Confesso que eu também nunca fui uma pessoa de ficar paparicando muito chefes e colegas. Fazia sempre o meu trabalho, dava o melhor de mim, tratava a todos com respeito, mas me tornava mais próxima apenas de pessoas com as quais realmente me sentia bem.
Sempre tive opinião própria e quando estava certa que tinha razão, não media esforços para fazer valer a minha posição, mesmo que ela fosse contrária a meus superiores. Há pessoas que recuam quando se deparam com alguém com o poder de demiti-las. Eu nunca recuei. Batemos de frente muitas e muitas vezes. Apesar disso, nunca houve um grande desentendimento entre nós porque eu sempre procurava manter a calma, embora por dentro ficasse furiosa. Em uma ocasião eu o peguei nervoso com alguma coisa e apresentei a ele um problema. Sua reação foi agressiva e pela primeira vez (e última, felizmente) ele gritou comigo. As pessoas próximas se assustaram porque não podiam entender aquele ataque de fúria. Eu me segurei, me mantive firme e sai de sua sala como se nada tivesse acontecido. Continuei a trabalhar como se a gritaria não tivesse sido comigo. Acho que fui tão convincente que ninguém entendeu nada. Acabaram achando que os gritos talvez tivessem sido dirigidos a outra pessoa.
Estou certa de que vontade para ele me demitir não deve ter faltado. Aparentemente ele não o fez porque eu trabalhava muito bem e mesmo que não admitisse, precisava de mim. Da minha parte também houve momentos em que eu pensei em sair, mas gostava de meu trabalho e, além disso, precisava do emprego. Em muitos momentos sei que fui prejudicada por essa relação tóxica, deixando de ser apresentada a oportunidades que naturalmente deviam ter surgido, mas que foram boicotadas. Meu desempenho também deve ter sido afetado, é claro. Mas o tempo passou, ele deixou a empresa e alguns anos depois eu também saí.
Nunca mais tinha ouvido falar dele e nem me lembrava das situações ruins a que a pessoa dele me remetia, até nos encontrarmos recentemente, por acaso, num corredor de Shopping Center. Fiquei praticamente em choque quando veio me cumprimentar, como se tivéssemos sido grandes amigos, e por insistência dele, acabamos até dividindo uma mesa para um café.
Após contar como estava sua vida e de me perguntar sobre a minha, ao que eu respondi um tanto constrangida, puxou assunto sobre os tempos de trabalho em conjunto.
Para minha total surpresa, me disse que precisava me pedir desculpas, que sabia que não tinha sido correto comigo, que havia me impedido de ascender profissionalmente, por pura antipatia. Confessou que havia me cortado de listas para viagens, inclusive ao exterior, de treinamentos e muitos outros benefícios, que acabaram sendo distribuídos para seus bem queridos. Disse que lamentava muito por tudo, que reconhecia a minha competência e que sabia que suas ações haviam me prejudicado, a ele e também à própria empresa.
Foi um pouco duro reviver todas aquelas experiências dolorosas, mas ele estava ali, na minha frente, me pedindo desculpas. Pensei muito e estava decidida a perdoar. Infelizmente não houve tempo. Eu acordei antes...


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O bom samaritano

“Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois foram embora e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele caminho; quando viu o homem, passou adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu e passou adiante pelo outro lado. Mas um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e teve compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal, e o levou a uma pensão, onde cuidou dele” . Lucas 10,30-34. Um gay ia caminhando pela avenida Paulista, quando foi abordado e espancado por uma gang de SkinHeads. Depois que ele estava desacordado de tanto apanhar, foram embora e o deixaram ali, quase morrendo. Um pastor que passava pela mesma calçada, viu e o ignorou, seguindo adiante, a caminho do culto. Um político também passou e desviou do caminho. Afinal, nem era época de el...

O século XX nas páginas do século XXI

            A polarização da literatura no século em que vivemos, a sua diluição entre tantos canais que a evolução tecnológica nos propicia, além do fato de ela estar sendo produzida por um número muito maior de pessoas em todo o mundo, pode ser o motivo pelo qual não tenha se formado ainda uma corrente literária atual, nova, genuína do século XXI.        Se no século XX tivemos movimentos como o Cubismo, o Futurismo, O Expressionismo, o Manifesto Dadaísta, o Surrealismo, o Modernismo, entre outros. Que rótulo teríamos hoje para o que está sendo produzido?             Na verdade, o que vivemos talvez seja uma assimilação de tudo o que surgiu no século passado, muito mais do que uma nova criação, uma degustação com uma releitura do que existia, com nosso olhar, a partir de diferentes vozes e de minorias ou de grupos maiores que, porém, nunca tiv...

Balada: a arte da narrativa em poemas e canções

       O nome Balada vem de uma tradição francesa, na era medieval, e o significado do termo tem  mesmo relação com o ato de bailar. Mais tarde se torna muito popular na Inglaterra e na Irlanda também. É uma cultura oral em que o poeta está em ato se  apresentando para uma plateia.  Por isso  estão  presentes  os elementos  teatrais. Ele faz todas  as inflexões de voz,  molda seu gestual,  tudo para a  história  que está contando. Muitas  vezes é acompanhado de um alaúde ou outro instrumento musical. Uma poesia muito próxima do espírito da  canção. Portanto, a balada está  muito ligada às próprias  origens do teatro. Uma origem muito performática, muito musical. E a balada tinha essa característica muito própria  –  era uma contadora de histórias, uma narrativa em versos.      Justamente por ser uma cultura baseada na oralidade, poucos nomes de compositores de b...