Pular para o conteúdo principal

A presença, a ausência e a ocultação do autor em sua obra

 

    Mesmo quando o autor escreve em primeira pessoa não está, necessariamente, escrevendo sobre si. Da mesma forma, quando usa a terceira pessoa, pode estar descrevendo suas experiências de vida projetadas em um terceiro. O mesmo acontece na poesia, com o “eu lírico”.

    Há autores que se fazem constantemente presentes em suas obras de tal forma que se fazem reconhecidos ainda que não sejam personagens da história. É possível reconhecer Woody Allen em seus filmes, inclusive naqueles em que ele não atua, apenas dirige. Há quadros em que os pintores se retratam ou se colocam dentro da sua criação. Por exemplo, no quadro “As meninas”, de Velasquez, o pintor se inclui em um canto da cena, pintando seu próprio quadro.

    Já outros não se identificam com tanta facilidade, porém, as próprias escolhas do que escrever e de como escrever trazem a sua marca. Não se encontra Jorge Amado em suas obras, mas se reconhece o escritor na forma humana com que ele trata os meninos em Capitães da Areia, por exemplo, que em outras narrativas poderiam ser retratados como delinquentes. Chico Buarque também não está inserido diretamente em suas composições, mas está visível nos temas de suas músicas, quando fala sobre futebol, sobre comida de boteco, sobre samba ou quando retrata os filhos e sobrinhos brincando.

    Quanto tentamos fazer uma crítica psicológica de uma obra, podemos cometer enganos, pois, nem tudo o que se escreve vem necessariamente do íntimo do escritor. Quanto tentamos fazer uma crítica social, também podemos nos enganar, pois nem sempre há um posicionamento político ou ideológico em uma criação. Pode ser apenas uma invenção, uma construção de algo que talvez não esteja no mundo do autor. Às vezes há um esforço de análise para caber em uma tese que é de quem analisa e não do analisado. Todas esses olhares juntos, incluindo-se a crítica genética, que busca conhecer a trajetória do autor até chegar à conclusão da obra, que analisa seu processo de criação, através da análise de cartas trocadas entre autores, anotações, alterações em rascunhos, talvez possam, aí sim, chegar a uma conclusão mais próxima do real.

    Finalizando, assinar a autoria, seria uma coisa burguesa, da arte mercantil, da arte transformada em comércio? Seria vaidade ocidental, individualismo? Na verdade pode ser apenas o exercício do direito a singularidade de cada ser humano, da forma com que trata suas impressões pessoais a partir de experiências coletivas. Seria, portanto, justo que ele assinasse o que construiu. Da mesma forma não são as invenções patenteadas pelos cientistas?

Obs.: Reflexões resultadas do nosso X Encontro de Escritores e Leitores, evento virtual realizado em 20/03/2021, pelo Google Meet.

#literatura #arte #autor #escrita #poesia #música #cinema


Comentários

  1. O eu literário é um coletivo que abrange a voz em primeira pessoa, o narrador em terceira pessoa e o leitor que, ao ler, cria uma nova voz ao texto. Desta forma, o autor, ao ocultar-se atrás de personagens e alegorias, permite que o leitor se faça presente, em uma relação simbiótica que perfaz a beleza da literatura e da arte. A arte é uma criação democrática e harmoniosa na combinação do individual com o coletivo. Parabéns, Fátima, por organizar este belo Encontro!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sua definição é uma daquelas, que o autor deve exclamar ao ler: "Nossa, fui que escrevi!". Excelente!

      Excluir
  2. Obrigada por completar o texto com seu comentário. Grande encontro feito por todos nós!

    ResponderExcluir
  3. Perfeita síntese da temática abordada no "Encontro...". Parabéns!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É importante saber que consegui resumir um conteúdo tão profundo para que fique guardado e possamos consultá-lo sempre que que necessário. Obrigada por seu retorno!

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O bom samaritano

“Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois foram embora e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele caminho; quando viu o homem, passou adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu e passou adiante pelo outro lado. Mas um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e teve compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal, e o levou a uma pensão, onde cuidou dele” . Lucas 10,30-34. Um gay ia caminhando pela avenida Paulista, quando foi abordado e espancado por uma gang de SkinHeads. Depois que ele estava desacordado de tanto apanhar, foram embora e o deixaram ali, quase morrendo. Um pastor que passava pela mesma calçada, viu e o ignorou, seguindo adiante, a caminho do culto. Um político também passou e desviou do caminho. Afinal, nem era época de el...

O século XX nas páginas do século XXI

            A polarização da literatura no século em que vivemos, a sua diluição entre tantos canais que a evolução tecnológica nos propicia, além do fato de ela estar sendo produzida por um número muito maior de pessoas em todo o mundo, pode ser o motivo pelo qual não tenha se formado ainda uma corrente literária atual, nova, genuína do século XXI.        Se no século XX tivemos movimentos como o Cubismo, o Futurismo, O Expressionismo, o Manifesto Dadaísta, o Surrealismo, o Modernismo, entre outros. Que rótulo teríamos hoje para o que está sendo produzido?             Na verdade, o que vivemos talvez seja uma assimilação de tudo o que surgiu no século passado, muito mais do que uma nova criação, uma degustação com uma releitura do que existia, com nosso olhar, a partir de diferentes vozes e de minorias ou de grupos maiores que, porém, nunca tiv...

Balada: a arte da narrativa em poemas e canções

       O nome Balada vem de uma tradição francesa, na era medieval, e o significado do termo tem  mesmo relação com o ato de bailar. Mais tarde se torna muito popular na Inglaterra e na Irlanda também. É uma cultura oral em que o poeta está em ato se  apresentando para uma plateia.  Por isso  estão  presentes  os elementos  teatrais. Ele faz todas  as inflexões de voz,  molda seu gestual,  tudo para a  história  que está contando. Muitas  vezes é acompanhado de um alaúde ou outro instrumento musical. Uma poesia muito próxima do espírito da  canção. Portanto, a balada está  muito ligada às próprias  origens do teatro. Uma origem muito performática, muito musical. E a balada tinha essa característica muito própria  –  era uma contadora de histórias, uma narrativa em versos.      Justamente por ser uma cultura baseada na oralidade, poucos nomes de compositores de b...