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A Criação Literária: entre a forma e a fôrma

 


Tratados sobre a forma da escrita literária são muito antigos. Desde a Grécia antiga existe essa preocupação por parte dos filósofos. Um dos primeiros que precisa ser lido é a Arte Retórica e Arte Poética, de Aristóteles, em que ele já faz uma distinção entre prosa e poesia. Na retórica, ele já nos traz a estrutura básica de um texto, dividindo-o em três partes: início, meio e fim. Quando fala de poesia, ele a aproxima muito do universo musical e fala sobre a necessidade de métrica, para diferenciar os gêneros. Ou, às vezes, diferenciar os tempos. 

Uma epopeia será algo diferente de uma balada, ou de uma canção de gesta, de um soneto, seja ele petrarquiano, shakespeareano etc. A redondilha maior e o cordel estão intimamente ligados. Para que se componha um soneto é preciso criar quatorze versos. Se fizer só três, não será um soneto. Se fizer 32, também não. Na música, o blues é definido por doze compassos. O frevo tem um ritmo próprio que o caracteriza. Para se fazer bossa nova é preciso usar os dissonantes desse gênero, assim como para o samba, o rock, MPB etc.

Mas quando um gênero fica rígido demais, ele tende a se cristalizar, ou até se folclorizar. Por exemplo, não se vê nada de novo acontecendo no frevo ou na própria bossa nova, que já não é mais nova. Raramente surge uma composição com uma inovação estética. Entretanto, o samba foi se renovando ao longo das décadas, tem sua raiz no passado, mas foi passando por transformações. Do rock de Little Richard, de Chuck Berry para o rock que vem depois, nas décadas de 60, 70 e 80, há um gênero musical que deixou de ser rock and roll para ser apenas rock, como uma expressão de cultura maior, quase como uma expressão de cultura popular, da arte popular na música. O rock deixou de ser simplesmente um ritmo quatro por quatro para ser uma manifestação de uma contracultura, sendo possível encaixar muito mais nesse meio. Temos tanto Stairway to Heaven como rock, quanto Love of My Life, por exemplo. Quanto mais aberto se coloca o gênero, mais ele vai se renovando também.

Para se fazer um soneto, um haicai, há que se absorver a forma, entendê-la, para poder criá-la. Mas uma “fôrma” nos aprisiona. Quem quiser fazer um soneto como fez Petrarca ou Shakespeare, estará preso por uma “fôrma”, por um modo de fazer que não dá oportunidade de inovar. A forma é importante para se entender o universo do qual se quer participar, mas a “fôrma” é a prisão que muitas vezes o gênero nos impõe.

O haicai tem uma forma fixa, porém, arejada por várias visões. Há autores que seguem exatamente três versos com 5-7-5 sílabas, tendo que ter o kigo no primeiro verso, a palavra da estação. Quando se segue isso de forma rígida, não há muito espaço para criatividade. Mas existem poetas como Paulo Leminski, Alberto Marsicano, Millôr Fernandes, Glauco Mattoso, Olga Savary que propõem algo mais flexível em favor do sabor do haicai, do chamado zen do haicai. O poeta bashoniano não se preocupa tanto com essa métrica, pois o haicai de Bashô é anterior ao de Masaoka Shiki, que trouxe a métrica. Quem entende que o haicai é sobre dizer o necessário, sabe que muitas vezes não há necessidade desse regramento. É claro que a métrica passa a ser importante a partir do momento em que você quer se desafiar, ou mesmo quer aprender.

No século XVI, em Minas Gerais, havia crianças que iam de porta em porta falando “Aldravias”, poemas de seis palavras, uma em cada verso, desde que caracterizadas por um voo poético, uma musicalidade. A simples nomeação de seis palavras em uma estrofe não compõe uma Aldravia. Nesse caso, trata-se apenas de uma banalização do gênero. Mesma banalização que muitas vezes vem ocorrendo no haicai e em outras formas de poesia, principalmente nas redes sociais. Ao mesmo tempo em que elas popularizam, democratizam uma informação, essas redes tendem a banalizar, enfraquecer um gênero.

Embora conhecer a forma e a fôrma sejam importantes, as subversões a elas são muito bem-vindas. Em memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, Machado de Assis já subverte a ordem das coisas trazendo ao leitor, no início, o que seria o fim da história, ou seja, a morte do protagonista. Em A Metamorfose, Kafka começa o livro já apresentando o climax, sem deixar que se perca o interesse pela narrativa. A pontuação, item tão caro num texto em prosa, é subvertida por Guimarães Rosa buscando recuperar na escrita as características da língua falada, usando neologismos, por Clarice Lispector começando o texto com a vírgula, por José Saramago escrevendo com pouquíssima pontuação e por Cortázar requerendo novas técnicas de leitura com O Jogo da Amarelinha. Pensando ainda em prosa, podemos destacar a subversão em Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade.

Mas para que se possa subverter a ordem é necessário primeiro conhecê-la, conhecer a forma e a fôrma. O estudo na primeira etapa é necessário para entender a riqueza da poesia em si, para só depois aprender como subvertê-la.

E é quando o autor exercita a forma de uma maneira muito pessoal e com muita liberdade que sua voz aparece no que ele escreve. Um texto se torna autoral quando seu criador demonstra um domínio total da forma, de modo a se transformar nela.

Escrever poemas com versos livres é mais difícil, pois o autor terá de abrir mão da métrica, sem poder abrir mão da musicalidade, da imagem. Como disse Robert Mckee, em seu livro Story, “escrever poesia sem métrica é como jogar tênis sem rede”. Ou seja, é preciso saber muito bem onde colocar a bola, sem ter a referência física da rede e mesmo assim respeitar as principais regras do jogo. João Cabral de Melo Neto subverteu algumas regras da poesia com poemas ríspidos, sem se preocupar tanto com a métrica, parecendo ser feitos de mandacaru e pedra, de tão sofridos. Como em O cão sem plumas, por exemplo, que até se tornou um espetáculo de dança adaptado por Deborah Colker, ganhando outra perspectiva. Desta forma, falar de fôrma e forma transborda um pouco para outras expressões artísticas.

O mesmo podemos dizer da música. Quem estuda violão sabe que existe uma maneira certa de se pegar no braço do instrumento, de se colocar o polegar, de se ter uma postura em relação a ele. Mas observamos que a música popular brasileira não se fez com esse regramento do violão clássico, mas do violão popular, daquela postura sentada, corcunda, cantando baixo, estilo de João Bosco.

Já no cordel, há uma necessidade de se trabalhar com uma sextilha, uma septilha, uma métrica, ou então, o que criar será outra coisa e não cordel. Dentro da literatura popular, o “martelo a galopado”, o “galope à beira-mar”, tudo tem que seguir a regra. Galope são dez versos, com as rimas, não há como ser diferente disso.

Mas na arte em geral, nem sempre usar a técnica é sinal de genialidade, de inspiração, de ser capaz de tocar as pessoas. Há algo que de fato deve brotar da alma. Pensando dessa forma, nessa inspiração, podemos analisar a fôrma como algo impossível de existir, se pensamos nela como algo que, tal qual uma fôrma de bolo, possa fazer com que qualquer pessoa construa um texto de qualidade. É o que alguns cursos de escrita criativa vendem por aí: “Aprenda a escrever um best-seller!”.

É claro que há muitos desses cursos que podem dar dicas interessantes de como escrever e, principalmente, de como não escrever. Por exemplo, listando erros mais comuns que os iniciantes cometem. Mas há aqueles que prometem receitas a serem seguidas para fazer de qualquer pessoa um bom escritor, o que não existe.

Há autores que criaram muitas teorias para a escrita, a própria estrutura de arquétipos, de Aristóteles, como já foi dito, a Jornada do Herói, de Joseph Campbel, quando trazidas para o escritor iniciante, quando analisadas em suas estruturas, podem ser de grande valia para o aprendizado.

Mas escrever traz muito mais de cada pessoa que o faz, traz suas experiências, seu conhecimento, sua forma de olhar e de enxergar as coisas, de uma maneira própria. Nada disso pode ser forjado.

Em todas as artes, quem faz o papel de transmitir um ensinamento também precisa ter a noção de que a arte irá se renovar a cada época, e que as formas e fôrmas conhecidas, poderão ser renovadas, alteradas, subvertidas.

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Obs.: Texto escrito com base no que foi discutido no 29º Encontro de Escritores e Leitores, com o tema: A Criação Literária: entre a forma e a fôrma, realizado pelo Google Meet, em 21/03/2025.

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