Em relação à literatura, existem
pessoas que pensam que escrever exige certo rebuscamento, certa formalidade de
linguagem, como se o escrever literário tivesse, necessariamente, somente essa
característica formal. Isso talvez tenha prevalecido até o século XIX. Mas no
século XX, a literatura começou a incorporar mais a linguagem da rua, embora
esse não tenha sido um processo tranquilo.
Buscando exemplos dessa mudança,
podemos citar Allen Ginsberg, poeta americano, entre tantos da geração beat,
que publicou, em 1956, “Uivo e outros poemas”, livro em que ele, homossexual
declarado, muitas vezes descreve atos sexuais entre homens, usando palavras de
baixo calão. Essa publicação levou, não o autor, mas o editor para o banco dos
réus.
O livro foi censurado e Lawrence
Ferlinghetti, da editora City Lights, foi processado por uso de linguagem crua
e termos obscenos. Embora fosse uma época de direita, do macartismo dominante,
a constituição americana o salvou da condenação, fazendo com que a obra se
tornasse um marco na defesa da liberdade de expressão, com especialistas
defendendo a importância social dos poemas, além de tornar o livro conhecido e
procurado.
Em 1959, William Burroughs
publicou “Almoço Nu”, com delírios sádicos homossexuais e paranoicos induzidos
pelo uso de heroína. Teve ameaça de censura, mas como já havia o processo
anterior para ampará-lo, seu caminho foi bem mais fácil em relação ao padrinho
literário, Ginsberg.
Charles Bukowiski, autor, entre
outros, de “Crônica de um amor louco”, caracterizado como obsceno e de estilo
totalmente coloquial, fazia descrições de trabalhos braçais, porres e
relacionamentos no submundo da prostituição.
No Brasil, podemos destacar
Cassandra Rios, pseudônimo de Odette Pérez Ríos, como um fenômeno do mercado
editorial entre as décadas de 50 e 70, muito comentada como uma escritora
maldita. Lésbica assumida, ela também colocava, em linguagem da rua, tudo o que
acontecia em meio ao homossexualismo feminino. Dos 50 livros que ela lançou, 36
foram censurados. No início ainda não havia uma censura mais cruel. Seus livros
eram vendidos em bancas de jornais. Porém, quando chegou o regime militar, ela
teve 14 de suas obras recolhidas em seis meses e foi à falência, porque vivia
dos direitos autorais que recebia.
Ainda antes, Jorge Amado, havia
lançado “Capitães da Areia”, em 1937, na era da ditadura Vargas, o Estado Novo.
Por trazer na obra a linguagem dos meninos de rua e descrever suas
experiências, ele foi perseguido, preso e teve a obra censurada.
Um autor que trabalhasse os
mesmos temas dos autores citados até aqui, com uma linguagem mais branda, mais
pasteurizada, talvez não sofresse tanta repressão. O problema não era o tema em
si, mas a linguagem, a linguagem do meio.
Guimarães Rosa foi considerado um
grande inovador na literatura, exatamente por trazer os falares sertanejos. Em
“Grande Sertão: Veredas”, não é um narrador culto que conta a história, e sim
Riobaldo, um jagunço letrado. É a linguagem do matuto, com seu ritmo de
fala. O autor, que era mineiro,
acompanhava os tropeiros em viagem. Foi um escritor que não teve problemas com
a justiça, mas com a crítica da época. Hoje ele é uma unanimidade, todos o
respeitam, mas, naquela época, não. Muita gente achava sua escrita difícil, diziam
que aquilo não era escrever bem. Foi um restaurador da língua, porque pegava
palavras que tinham caído em desuso e trazia para a literatura.
Visconde de Taunay escreveu
“Inocência”, um romance regionalista brasileiro que retrata a vida e os costumes
dos sertanejos do interior de São Paulo no século XIX. Faz isso com termos
acaipirados, só que usando dois pontos, travessão, para a fala das personagens.
Usa, por exemplo, “vassuncê”, que já é uma forma acaipirada do “vossa mercê”,
que virou “vosmecê”, pra depois virar “você”.
Embora muitos digam que não,
podemos considerar histórias em quadrinhos como literatura. E até nesse suposto
inocente mundo de histórias infantis, Maurício de Sousa enfrentou problemas.
Colocou um menino da língua presa e outro falando com sotaque caipira.
Cebolinha é um personagem criado em 1960 e Chico Bento, em 1963. Diziam que esses
personagens estavam ensinando as crianças a falar errado.
Em “Quarto de despejo”, Carolina
Maria de Jesus, uma pessoa que não tinha estudo, mas que tinha uma visão muito
ampla da realidade que a cercava, narrou a sua rotina com a sua forma de se
expressar. Quando descobriram a grandeza de sua escrita, resolveram publicar,
optando por não corrigir os erros que continha, para que a obra não perdesse a
sua identidade.
Muitos autores, como José
Saramago, têm uma forma não convencional de pontuar seus textos, com frases
longas e complexas, com predominância de vírgulas sobre outros sinais de
pontuação, com uso frequente de discurso indireto livre, em que a voz do
narrador se mistura com os pensamentos e falas dos personagens.
Um leitor distraído que leia
“Feliz Ano Velho” e “Ainda Estou aqui” pode pensar que são dois autores
totalmente diferentes. Isso porque Marcelo Rubens Paiva os publicou em 1982 e
2015, respectivamente. Em “Feliz Ano Velho”, o jovem de 20 anos relata as
mudanças ocorridas em sua vida, após o acidente que o deixou tetraplégico, optando
na época por usar palavras chulas e uma linguagem coloquial em praticamente
toda a obra. 33 anos depois, o novo
livro de memórias já tem uma escrita impecável em relação à norma padrão. No
entanto, o valor das duas obras é inquestionável, valendo ainda destacar que o
primeiro teve um grande sucesso de vendas desde seu lançamento e continua, até
hoje, sendo um livro popular.
Nos tempos atuais, a escritora
Nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que acaba de lançar “A contagem dos sonhos”,
conta que o editor não queria publicar seu primeiro romance, “Hibisco Roxo”,
porque, nele, ela mistura o inglês, a língua oficial da Nigéria, com o igbo,
que é a língua de sua etnia. Fazendo um pouco do que Ezra Pound havia previsto:
que chegará uma hora que iremos misturar os idiomas do mundo em uma só poesia.
Falando em Ezra Pound, foi um dos
primeiros intelectuais a traduzir os ideogramas chineses. Defendia que a poesia
tinha que ter uma linguagem enxuta, simples, direta. Sem ficar descrevendo
muito, com muitos adjetivos. Ao mesmo tempo, defendia que a poesia é a
linguagem do mundo.
O "Plano-Piloto para Poesia
Concreta", publicado em 1958, é o manifesto que lançou as bases do
movimento concretista no Brasil, idealizado por Augusto de Campos, Haroldo de
Campos e Décio Pignatari. Esse manifesto propunha uma poesia que explorava a
materialidade da palavra, integrando som, imagem e sentido.
A Poesia Concreta é uma poesia
econômica, geométrica, em que muitas vezes se trabalha com duas palavras, mas
que, de acordo com o jeito que elas interagem, forma-se todo um conceito. Na
poesia concreta parece que se está escrevendo pouco, mas, naquele pouco que se
escreve, se diz muito. O poema “Lixo Luxo”, de 1965, é formado por um
aglomerado de palavras “Luxo” dispostas, formando a palavra “Lixo”. Apenas duas
palavras que dizem muito sobre o contexto atual que, socialmente,
ecologicamente, ambientalmente demonstra o que estamos fazendo, com todo nosso
luxo, gerando lixo.
Mesmo já tendo destacado Jorge
Amado, devemos lembrar que a cultura nordestina tem muitos outros
representantes na literatura, na poesia e na música.
Elomar Figueira de Melo traz a
linguagem do sertão, da roça. Embora tenha estudado, feito faculdade de
arquitetura, lança mão, em suas composições, dos termos que as pessoas usam no
interior. Na música “O pedido”, por exemplo, relembra a situação de uma pessoa
que morava na roça, que não tinha transporte para a cidade, para a feira, e que,
por isso, quando alguém ia, fazia o pedido. “Já que tu vai lá pra feira, traga
de lá para mim, água da fulô que cheira, um novelo e um carrim, traz um pacote
de miss, meu amigo, ah, se tu visse, aquele cego cantador, um dia ele me disse,
jogando um mote de amor, que eu havera de viver, por este mundo e morrer, ainda
em flor...”.
O que Elomar fez na música,
Ariano Suassuna fez na literatura e no teatro, recuperando a cultura medieval
que imigrou no Nordeste, o repente, o cordel e o conceito armorial. Sua obra
parece dar um sentindo mais afetivo quando usa a linguagem mais popular. Chicó,
do “Auto da Compadecida”, jamais poderia ter uma linguagem acadêmica.
Apenas para citar mais alguns
poetas e escritores nordestinos, listamos Patativa do Assaré, Zé da Luz, João
Ubaldo Ribeiro, Braulio Tavares, entre muitos outros.
Podemos mencionar, também,
Augusto dos Anjos, com sua linguagem inovadora, que mistura vocabulário
científico e técnico com temas ligados à morte, à putrefação e ao pessimismo
existencial.
Do Rio de Janeiro, lembramos José
Cândido de Carvalho, autor de “O coronel e o Lobisomen”, “Olha para o céu,
Frederico!" e diversos contos reunidos em obras como "Um ninho de
mafagafes cheio de mafagafinhos" e "Porque Lulu Bergantim não
atravessou o Rubicão". Ele destaca-se com uma escrita original, marcada
pelo bom humor, inventividade e domínio da linguagem, penetrando no imaginário
popular, trazendo a linguagem das periferias do Rio, mas não da capital, e sim
do campo, da roça.
O estilo de Dalton Trevisan,
conhecido por sua concisão, com contos curtos e linguagem enxuta,
frequentemente elíptica, valorizava a oralidade, com o uso de frases curtas e a
simplicidade, buscando um estilo próximo da fala cotidiana, uma espécie de
linguagem jornalística da literatura. Pegava material nas delegacias para
compor suas histórias.
Não podemos deixar de mencionar
Adoniran Barbosa, que compôs com o linguajar regional, de sua cidade, também de
influência italiana. “Arnesto nos convidou, prum' samba, ele mora no Brás. Nós
fumos, não encontremos ninguém. Nós vortermos com uma baita de uma reiva. Da
outra vez, nós não vai mais...”.
Lembramos a linguagem do rap, bem
popular, semelhante ao repente, às batalhas e desafios, ao renga da cultura
japonesa, que originou o haicai. Está tudo muito próximo.
Recentemente, alguns autores
incorporaram à literatura a linguagem neutra, também conhecida como linguagem
inclusiva, como sendo uma forma de comunicação que visa evitar a marcação de
gênero no discurso, buscando a inclusão de todas as pessoas, independentemente
de sua identidade de gênero (todes...etc).
Do humor, lembramos o personagem
Mussum, com seu linguajar único. “Cacildes!”.
Na tentativa de concluir esta
vasta reflexão sobre “os diversos falares” da literatura, recorremos a Luis
Fernando Verissimo, que, em uma crônica, se intitulou “gigolô das palavras”,
pois as usaria como bem entendesse e Ferreira Gullar que dizia que “a crase
existe, mas não é para humilhar ninguém”. E para completar, do livro “A Normal
Oculta”, de Marcos Bagno, “melhor sermos repreendidos pelos gramáticos, do que
não sermos entendidos pelo povo”.
Dicas de obras mencionadas:
Livros:
Uivo e outros poemas – Allen
Ginsberg
Almoço Nu – William Burroughs
Crônica de um amor louco - Charles
Bukowiski
Georgette - Cassandra Rios
Capitães de Areia – Jorge Amado
Grande Sertão: Veredas –
Guimarães Rosa
Inocência - Visconde de Taunay
Quadrinhos diversos – Maurício de
Sousa
Quarto de despejo - Carolina
Maria de Jesus
Feliz Ano Velho e Ainda estou
aqui – Marcelo Rubens Paiva
Hibisco Roxo e A contagem dos
sonhos - Chimamanda Ngozi Adichie
ABC da Literatura - Ezra Pound
Auto da Compadecida – Ariano
Suassuna
O coronel e o Lobisomen, Olha
para o céu, Frederico!, Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos" e
"Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicão" - José Cândido de
Carvalho
A Normal Oculta - Marcos Bagno
Música:
O pedido - Elomar Figueira de
Melo
Filmes:
O Auto da Compadecida
Mussum, o Filmis
#livros #literatura #arte
#escrita #falares
Obs.: Este texto foi elaborado com
o conteúdo do que foi discutido durante o 31º Encontro de Escritores e
Leitores, acontecido no dia 27/06/2025, às 19 horas, no CME Adamastor, cujo
tema foi: A Literatura e os diversos falares.
Amei participar dessa roda de conversa. Quanta profundidade e eu lendo um texto sobre troca-troca… só quem participou vai entender kkk ansioso para os próximos.
ResponderExcluirQue alegria, Zhé, saber que gostou! Espero, sim, que possa estar conosco novamente em agosto (29/08). Continuemos com essas trocas maravilhosas! rsrs.
ResponderExcluir