Pular para o conteúdo principal

Pai&Filhos&Álcool


A proximidade do dia dos pais nos induz a refletir sobre a relação pai e filho, sobre as influências que um exerce sobre o outro, sobre as responsabilidades, os prazeres, as dificuldades, as barreiras que podem se colocar no meio dessa relação.

Entendo que só a parte boa seja objeto das postagens nas redes sociais, nas peças de propaganda, nas conversas e reuniões em família. Faz parte de nossa tendência, na maioria das vezes positiva, de reforçar coisas boas, momentos felizes e conquistas em nossas vidas.

Por esse motivo, mais uma vez, peço desculpas por trazer à pauta assuntos não tão agradáveis de ler, ao estarmos próximos de tão importante data comemorativa. Mas afinal, essa é a proposta do meu livro Código 303. Considero de suma importância uma reflexão profunda sobre a relação Pai&Filhos&Álcool.

Outro dia fui a um churrasco de amigos de um amigo. Fui muito bem recebida naquele grupo e passei momentos agradáveis, é verdade. Porém, uma situação que presenciei me preocupou grandemente. O homem que estava pilotando a churrasqueira o fazia durante todo o tempo e de maneira muito competente. Servia a todos, o tempo todo, carnes mal e bem passadas, linguiça, frango, tudo que é comum em um churrasco. Ele também tinha sempre nas mãos uma lata de cerveja e vigiava as mesas para não deixar ninguém de copo vazio. Era um excelente anfitrião.

Só essa atitude não seria tão reprovável, mesmo que ele tenha embebedado meu amigo, que não sabia dizer não, mas, afinal de contas estávamos em uma festa. Não é o que se costuma fazer em ocasiões como essa? Além disso, ninguém era obrigado a beber tanto. Bastava dizer “não, obrigado”. Será? Deixando essa questão de lado, o fato é que a reunião era em comemoração ao aniversário de sua filha adolescente que fazia 13 anos. Ainda, ignorando tudo isso, a principal razão de minha indignação foi o diálogo e a ação que veio após começarmos a comentar meu livro sobre alcoolismo.

“Eu posso ser personagem do seu livro”, dizia ele em tom de brincadeira. Eu apenas sorria, embora não achasse aquilo nada engraçado. Para reforçar sua tese ele indagava o filho, de 10 anos: “Desde quando o pai está bebendo?”. O garoto respondia para atendê-lo. “Desde hoje cedo, pai”. “E o que foi que o pai bebeu?”, continuava em tom de orgulho. “Vodka e cerveja”, contava o filho. O homem orgulhava-se de ter bebido tanto, por horas seguidas e aparentemente continuar de pé e conseguindo manter-se relativamente sóbrio (ao menos na sua visão).

Indagar o filho daquela forma, fazendo-o cúmplice de sua embriaguez não bastou. Para minha surpresa e indignação em dado momento ele ofereceu cerveja ao filho, que bebericou no copo do pai. Foi quando achei por bem intervir. “Não faça isso, por favor,”. Não se dá bebida a uma criança, adverti. “Ele já provou, mas, não gosta”, defendeu ele.  “É por isso que eu dou pra que ele prove e não goste. Assim não vai beber na rua”. Tentei argumentar mais uma vez, mas, foi inútil. Visivelmente entristecida, resolvida a colocar aquelas crianças em minhas orações e mais tarde pensar no que mais poderia fazer, deixei para ele um exemplar de meu livro, com a esperança de que o lesse e se convencesse a abandonar aquele comportamento.

Para completar essa história selecionei alguns trechos de depoimentos do Código 303 que têm relação com o assunto. Eles dispensarão explicações:

“Durante minha infância e juventude, sempre me entristeceu não poder trazer meus amigos em casa. Tinha vergonha que presenciassem meu pai bêbado”.

“Meu pai sempre foi muito violento. Nós éramos quatro meninas. Um dia, estávamos todas no quarto, apavoradas porque ele havia bebido muito. Ele entrou com um revólver na mão e disse que se não parássemos de chorar ele nos mataria”. Ana, filha de um alcoolista.

“Experimentei o álcool pela primeira vez aos seis anos de idade. Como era costume das famílias que moravam na roça,..., todos se sentavam à mesa na hora do jantar. Meu pai tomava uns golinhos de cachaça antes das refeições e não deixava de oferecer aos filhos”. Júlio, um alcoolista em recuperação.

#alcoolismo

#consumoexcessivodealcool

#bebida

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O bom samaritano

“Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois foram embora e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele caminho; quando viu o homem, passou adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu e passou adiante pelo outro lado. Mas um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e teve compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal, e o levou a uma pensão, onde cuidou dele” . Lucas 10,30-34. Um gay ia caminhando pela avenida Paulista, quando foi abordado e espancado por uma gang de SkinHeads. Depois que ele estava desacordado de tanto apanhar, foram embora e o deixaram ali, quase morrendo. Um pastor que passava pela mesma calçada, viu e o ignorou, seguindo adiante, a caminho do culto. Um político também passou e desviou do caminho. Afinal, nem era época de el...

O século XX nas páginas do século XXI

            A polarização da literatura no século em que vivemos, a sua diluição entre tantos canais que a evolução tecnológica nos propicia, além do fato de ela estar sendo produzida por um número muito maior de pessoas em todo o mundo, pode ser o motivo pelo qual não tenha se formado ainda uma corrente literária atual, nova, genuína do século XXI.        Se no século XX tivemos movimentos como o Cubismo, o Futurismo, O Expressionismo, o Manifesto Dadaísta, o Surrealismo, o Modernismo, entre outros. Que rótulo teríamos hoje para o que está sendo produzido?             Na verdade, o que vivemos talvez seja uma assimilação de tudo o que surgiu no século passado, muito mais do que uma nova criação, uma degustação com uma releitura do que existia, com nosso olhar, a partir de diferentes vozes e de minorias ou de grupos maiores que, porém, nunca tiv...

Balada: a arte da narrativa em poemas e canções

       O nome Balada vem de uma tradição francesa, na era medieval, e o significado do termo tem  mesmo relação com o ato de bailar. Mais tarde se torna muito popular na Inglaterra e na Irlanda também. É uma cultura oral em que o poeta está em ato se  apresentando para uma plateia.  Por isso  estão  presentes  os elementos  teatrais. Ele faz todas  as inflexões de voz,  molda seu gestual,  tudo para a  história  que está contando. Muitas  vezes é acompanhado de um alaúde ou outro instrumento musical. Uma poesia muito próxima do espírito da  canção. Portanto, a balada está  muito ligada às próprias  origens do teatro. Uma origem muito performática, muito musical. E a balada tinha essa característica muito própria  –  era uma contadora de histórias, uma narrativa em versos.      Justamente por ser uma cultura baseada na oralidade, poucos nomes de compositores de b...