O gênero
comédia, embora explorado por grandes nomes da literatura, do cinema, do teatro
entre outras artes, raramente rendeu algum prêmio de destaque, tanto por
autoria, atuação ou por um misto de atividades envolvidas com a sua criação. E
isso só aconteceu quando a produção mesclou um pouco de drama à história, nos
levando a crer que a pura comédia não esteja sendo considerada digna do topo,
que esteja sendo entendida como inferior ao drama, à tragédia, ainda que,
comprovadamente, de qualidade e sucesso. Exemplos não faltam.
Entendida
prioritariamente como um instrumento de lazer — as gargalhadas nos relaxam e
nos afastam dos problemas do dia a dia — a comédia, quando bem elaborada e
interpretada, pode nos levar a refletir sobre os problemas da sociedade, mas de
forma leve e descontraída, tornando-se um importante canal de comunicação. Não
é à toa que as crônicas de Fernando Sabino, de Luís Fernando Veríssimo e
muitos outros tenham ido parar nas escolas, como fonte de estudo e discussão.
Na origem do
teatro, na Grécia Antiga, tínhamos a tragédia e a comédia, duas faces de um
mesmo todo, dois polos que se complementam, como no taoísmo, o Yin e Yang. A
tragédia falando da morte, da doença, da separação, do conflito. A comédia,
tratando dos mesmos infortúnios humanos, só que de uma forma cômica, engraçada.
A verdade é que nós precisamos rir de nós mesmos.
Mas voltando à
questão proposta para esse encontro, no que diz respeito à comédia ser ou não
um gênero menor, vemos que ela parece, sim, ser considerada menor, uma vez que
não vemos grandes comediantes sendo premiados por suas obras. Quantos Oscars
são dados a filmes, atores ou atrizes de comédia?
O mais recente
parece ter sido recebido por Roberto Benigni, por sua atuação em “A vida é
Bela”, em 1999. No filme, seu personagem faz com que o menino olhe para o campo
de concentração nazista como se fosse parte de uma gincana. Além do prêmio de
melhor ator, a obra também recebeu o Oscar por “melhor filme estrangeiro” e de “melhor
trilha sonora original”.
Mas quantos
escritores que recebem o Jabuti, o Prêmio Camões, o Nobel de literatura ou que
estão na Academia Brasileira de Letras são escritores de humor?
Podemos,
entretanto, citar mais um caso de sucesso. William Shakespeare se exercitou
tanto na tragédia como na comédia com um talento absoluto e é um dos poucos
cujo conjunto da obra é consagrado, independentemente do gênero. Ninguém olha
para “Hamlet” ou para “Macbeth” como obras maiores que “Sonho de uma Noite de
Verão”.
Antes de
entrarmos nos exemplos que comprovam a pouca valorização dos comediantes, cabe
uma observação. Não sabemos exatamente quando, talvez no século XX, que a
tragédia tenha deixado de ser “tragédia” e passado a ser chamada de “drama”. A
não ser que seja ao se referenciar às tragédias gregas, o termo “tragédia”
passou a ser muito mais associado à realidade, como um acontecimento ruim,
doloroso, do que à ficção, ao texto artístico.
E voltando aos
nossos exemplos, vejamos o que aconteceu com Charlie Chaplin, da primeira
geração do cinema, participante, um tanto a contragosto, da transição do mudo
para o sonoro. Atuando como vagabundo, ele ganhou um Oscar pelo filme “O
Circo”, que ainda chamavam de “Oscar Honorário”. Depois, ganhou outro só pelo
conjunto da obra, em 1972, já com idade bem avançada, e um terceiro de melhor
Trilha Sonora do filme “Luzes da Ribalta”. “Tempos Modernos”, “O Grande
Ditador”, “Luzes da Cidade”, entre outros, criações fabulosas, não ganharam
nada individualmente, parecendo ter a figura do palhaço os tornado indignos
dessa premiação. Para quem escrevia os próprios roteiros, dirigia os próprios
filmes, compunha as próprias trilhas sonoras, nos parece muito pouco
reconhecimento.
Jerry Lewis
foi desprezado pela crítica, justamente ao se tornar popular demais. Começou a
se destacar fazendo dupla com Dean Martin. Após a separação, Lewis foi fazer
uma carreira solo, escrevendo, dirigindo, atuando. Inventou o vídeo assist
system, que permitia filmar e ver a cena ao mesmo tempo. Revolucionou o jeito
de fazer cinema. Na França, é considerado um inovador, um revolucionário da
sétima arte. Atuando em múltiplas tarefas, em grandes filmes, como, por
exemplo, “O Professor Aloprado”, nunca recebeu nenhum grande prêmio.
O gênio Woody
Allen foi bastante premiado, mas só passou a ser reconhecido depois que começou
a mesclar o drama em suas comédias, como “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, “Manhattan”,
“A Rosa Púrpura do Cairo”... Por
“Bananas”, comédia rasgada, mais pastelão, já não teve tanto reconhecimento.
Apesar de estar em baixa nos EUA, Allen continua sendo referência na Europa, a
ponto de não se pensar em um Festival de Cannes sem a sua presença, justamente
por ser aquele que atua, escreve, dirige, cuida pessoalmente das trilhas
sonoras, de todos os detalhes, até das figurações.
Robin Williams
foi um ator com grande habilidade de improviso e variedade de personagens.
Entre suas grandes criações, podemos citar as presentes nos filmes “Bom Dia,
Vietnã”, “Sociedade dos Poetas Mortos”, “Uma babá quase perfeita”, “Patch
Adams” – O amor é contagioso”. Com todas essas suas qualidades e versatilidade,
só recebeu um Oscar como ator coadjuvante, em um drama — “Gênio indomável”. Por tudo isso, parece ser necessário ao
comediante fazer um papel mais sério para poder provar que é bom ator.
Para destacar
grandes escritores de humor não premiados, podemos citar Sérgio Porto, ou Stanislaw
Ponte Preta, pseudônimo que usava. “A fina flor de Stanislaw Ponte Preta” é uma
deliciosa antologia. Porém, nesse caso, por ter falecido muito jovem, com 45
anos, não podemos afirmar que um dia não teria sido formalmente reconhecido.
Mas Fernando
Sabino, jornalista, contista, cronista, autor de “O Homem nu” e “Encontro
Marcado”, que viveu até quase seus 81 anos, nunca foi da academia, nem chegou a
receber prêmio algum.
O mesmo
podemos dizer de Millôr Fernandes, que foi desenhista, humorista, dramaturgo,
escritor, poeta, tradutor e jornalista brasileiro que conquistou notoriedade
por suas colunas de humor gráfico em publicações como Veja, O Pasquim e Jornal
do Brasil, mas sem grandes premiações.
Outra exceção
à nossa tese, podemos dizer que foi Luís Fernando Verissimo, autor de “O
analista de Bagé” e “Comédia da vida privada”, entre muitos outros —, que ainda
vivia enquanto realizávamos esse encontro, mas que nos deixou um dia depois. Ao
longo da carreira, recebeu distinções importantes como o Prêmio Jabuti de Livro
do Ano em Ficção por Diálogos Impossíveis, o Prêmio Machado de Assis da
Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra, além de prêmios
internacionais como o Prix Deux Océans, na França.
Ariano
Suassuna, esse sim, foi da Academia Brasileira de Letras. Sua principal e mais
famosa obra é “O Auto da Compadecida”, peça que foi adaptada para a televisão e
cinema. O Romance d'A Pedra do Reino também teve grande destaque, assim como “O
Santo e a Porca” e “A Farsa da Boa Preguiça”.
Lembramos
também comediantes brasileiros que não alcançaram títulos de prestígio em suas
carreiras, mas que as construíram com grandes trabalhos. Chico Anysio já fazia
stand up no Fantástico, mesmo antes dessa categoria de humor passar a se chamar
assim. Com seu programa Chico City, foi reconhecido pelo RankBrasil, uma entidade
que documenta recordes brasileiros, como o humorista com o maior número de
personagens na televisão brasileira. Foi criador de inesquecíveis bordões e
ainda lançou muitos humoristas. A Escolinha do professor Raimundo foi sucesso
durante muitas décadas e ganhou até uma nova versão, com outros atores
representando os personagens.
Dercy
Gonçalves ficou caracterizada por sua “boca suja”, gerando memes que sobrevivem
até hoje nas redes sociais. Parecia não haver limites entre a pessoa e a
personagem. Virou uma figura folclórica, mas não foi reconhecida pelos filmes
que fez na época de Oscarito e Grande Otelo.
Ronald Golias
e Costinha já eram engraçados antes mesmo de abrir a boca.
Denise Fraga
foi uma das primeiras atrizes da peça “Trair e coçar é só começar”, campeã de
bilheteria e com maior tempo em cartaz no Brasil. Ao longo de sua carreira,
interpretou também papéis dramáticos e conseguiu ser reconhecida como uma atriz
“séria”, mesmo sendo comediante.
Atualmente, passamos por um momento de crise envolvendo o gênero comédia. Grandes gênios do humor saíram de cena e fica cada vez mais difícil encontrarmos quem faça rir de maneira inteligente, criativa. Muitos tentam, mas, de acordo com os assuntos que abordam, acabam por tropeçar em suas próprias “piadas”.
Andamos tendo muitos cancelamentos de comediantes, criticados e processados por fazerem uso de temas não aceitos como material para comédia. Um cancelamento bastante comentado na época foi do Rafinha Bastos, humorista do extinto programa de TV, o CQC, que mesclava notícias com humor, por fazer piada com deficientes físicos e mentais. Ainda mais recentes, tivemos os casos de Leo Lins (condenado por discursos discriminatórios), Abner Dantas (que fez piadas sobre as enchentes no RS) e o casal Lea Maria e Juliano Gaspar (por violência doméstica).
O fato é que o que dá pra rir, dá pra chorar. É uma questão de peso e medida. Os artistas do humor precisam “acertar a mão” novamente para buscar o riso, sem atingir ninguém, usando criatividade com um pouco de bom senso. Quem sabe, poderão, finalmente, conquistar reconhecimento que faça jus a seus talentos e os iguale, em oportunidades, em relação aos demais gêneros.
A reflexão gerada neste Encontro e neste texto é muito válida. A comédia é um gênero inerente à alma humana. A criança ri e acha graça em situações mesmo antes de desenvolver a linguagem. O artista carrega as sementes da tragédia, da comédia, do drama em si. A comédia é uma faceta importantíssima da arte. Rir não precisa doer. Parabéns pelo texto, Fátima!
ResponderExcluirO comentário acima foi feito por mim, mas me esqueci de assiná-lo. Coloco-o aqui novamente. Desta vez, saí do anonimato: A reflexão gerada neste Encontro e neste texto é muito válida. A comédia é um gênero inerente à alma humana. A criança ri e acha graça em situações mesmo antes de desenvolver a linguagem. O artista carrega as sementes da tragédia, da comédia, do drama em si. A comédia é uma faceta importantíssima da arte. Rir não precisa doer. Parabéns pelo texto, Fátima!
ResponderExcluirMuito obrigada, meu amigo, pela gentileza de ler e comentar. Sim, o riso importa e é necessário!
ExcluirMuito bom!
ResponderExcluirTexto fiel a nossa fala no Encontro.
Que bom! Agradeço a leitura e o comentário!
ExcluirOlá!
ResponderExcluirCom todo o respeito aos (e às) participantes do encontro que promoveu o debate sobre esse assunto tão relevante, gostaria apenas de fazer um comentário, sem qualquer intenção de impor verdades, mas apenas de provocar algumas reflexões aqui e contribuir sinceramente com o debate... Ao usar o termo "patrulha ideológica" e citar como exemplos Rafinha Bastos e Léo Lins, penso que, mesmo sem querer, corre-se o risco de relativizar crimes cometidos em nome da chamada "liberdade de expressão" e, pior, do uso da comédia para tal. Entendo, portanto, que, sobretudo nos casos citados, não se trata de qualquer tipo de "patrulha ideológica", mas, sim, de crimes cometidos por aqueles que se autodenominaram (e ainda se denominam) comediantes, mas que, no fundo, jamais poderiam ser considerados comediantes. Afinal, fazer deboche de pessoas negras, deficientes ou o que for são crimes previstos em lei.
Não consigo saber com quem estou falando, pois aparece aqui como anônimo. Mas, certamente é um tema bem polêmico e talvez se você estivesse presente, poderia ter contribuído com a discussão. Na verdade, não quis relacionar o termo "patrulha ideológica" diretamente com os casos citados no parágrafo seguinte. O texto é um resumo dos tópicos abordados. Procurei colocar evidências da crise enfrentada pelos comediantes. Crise essa de falta de criatividade para fazer humor, sem atacar pessoas ou cometer crimes, como você bem citou. Agradeço a sua leitura e o seu comentário e gostaria de poder contar com a sua presença nos próximos encontros.
ExcluirO encontro com debate sobre a "Comédia" foi simplesmente memorável. Dinâmico e envolvente, o evento trouxe informações precisas e dados valiosos, proporcionando uma oportunidade única de aprendizado e troca de ideias. Os participantes exploraram as nuances do gênero com entusiasmo, tornando o momento perfeito para reflexões profundas e diálogos enriquecedores. Valeu Fátima, Cesar e Guilhermina! Saudações literárias!
ResponderExcluirAngelo Macedo
Muito obrigada, Ângelo. Sua participação, bem como a da Isabel sempre contribuem para o sucesso do encontro. Saudações literárias!
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