domingo, 20 de dezembro de 2020

Planeta Novo

Autora: Fátima Gilioli

Sinopse:

Após detectar uma grave contaminação por vírus na Terra, dois jovens que trabalham no comando espacial da Ala Norte, região V do Alto Comando Militar Intergalático, atuam para neutralizar o problema, diante da ameaça de destruição do planeta que eles têm por função monitorar.

Planeta Novo

            Em algum lugar do espaço, em uma galáxia muito distante, uma nave pousa suavemente em sua plataforma, retornando de uma longa viagem. O piloto, jovem e arrojado, desce assobiando, feliz por mais uma de suas grandes aventuras concluídas, aparentemente com sucesso. A forma com que é recepcionado, porém, não é nada agradável.
            ─ Por onde você andou, cara? Tentei monitorar essa sua jornada irresponsável até quanto pude, mas em determinado momento, perdi conexão. O comandante não ficará nada feliz se souber da sua insubordinação. Em nome de nossa antiga amizade te fiz o favor de, até agora, manter sua “saidinha” em segredo. Só não sei por quanto tempo.
            ─ Oras, mas por quê? Eu estava em férias, esqueceu? Tive de dar uma voltinha por aí. Não aguentava mais ficar neste planeta, nessa quarentena que não termina nunca!
            O comando espacial da Ala Norte, região V do Alto Comando Militar Intergalático, é uma organização governamental do Universo que monitora à distância a vida em determinados planetas, considerados super-habitados e com sérios riscos de desaparecer e assim provocar um desequilíbrio populacional universal.
           ─ Ah sim, estava em férias e acha mesmo que isso lhe dá o direito de sair por aí, sem autorização, correndo vários riscos, inclusive o de espalhar até não se sabe onde esse vírus com o qual temos estado a batalhar por tanto tempo, sem, no entanto conseguir dizimar por completo?
          ─ Calma aí, cara. Não sou tão irresponsável assim. Eu fiz o procedimento completo de descontaminação antes de sair. Relaxa! Sabemos que o vírus N5J38 é resistente, mas pode ser neutralizado. Basta que saibamos onde está alojado. Já conseguimos até reduzir a sua capacidade de multiplicação. Faltam poucos a serem dizimados por aqui. É tudo uma questão de tempo. Essa quarentena já devia ter sido afrouxada há muito tempo. Não podemos ficar eternamente presos. Há muito que explorar lá fora.
            ─ Isso não é você quem decide. Você tem de cumprir ordens. Se a determinação é ficar em quarentena, precisa ser cumprida. Além disso, o mecanismo de desinfecção tem uma margem de erro. A essa altura você pode ter levado o N5J38 para os lugares onde passou. Aonde foi? Ah! Nem sei por que ainda perco tempo falando com você. Vou puxar o diário de bordo de sua nave. Deixe-me ver...Não acredito que você foi até a Terra! Justo lá? Nosso principal alvo de análise? Um planeta já com tantas dificuldades? Crianças, povos inteiros passando fome, reservas de água potável acabando, poluição no ar, na terra e no mar, guerras entre vários países, disputas de poder com armas atômicas espalhadas em vários pontos, violência, tantas e tantas ameaças e você os expõe a mais esse risco, porque estava em férias e sentia-se entediado?
            ─ Ah, amigo, é o seguinte, estou cansado da viagem. Meu corpo pede ao menos doze horas de sono, ok? Vou me trancar na cápsula de dormir. Não me interrompa. Tenho certeza que se você acionar a central de monitoramento da Terra vão relatar que está tudo normal e caótico como sempre. Boa noite!
            Algum tempo depois o jovem volta a falar com o amigo e as notícias que recebe não são nada animadoras.
            ─ Você tá encrencado! A central de monitoramento da Terra detectou uma grave infecção por N5J38. Por causa dele milhões de pessoas estão morrendo diariamente e outras sofrendo com as consequências desse mal. Em todo o planeta o número acumulado de mortes já passa de um bilhão. Se não fizermos nada o planeta vai ser dizimado por completo em pouco tempo.
            ─ Calma. Tem que ter um jeito. Não conseguimos eliminá-lo quase que por completo por aqui? Então! Tomaremos as mesmas providências lá e tá tudo certo.
            ─ Você fala como se tivesse sido fácil. Você sabe quão drástica foi a solução encontrada, não sabe? Tivemos de isolar para sempre todos os contaminados.
            ─ Claro que eu sei. Eu participei diretamente do projeto DESCONTAMINA. Por isso estou te dizendo que consigo. Tá certo que nosso planeta tinha um número bem menor de infectados, mas eu já tô tendo uma ideia aqui que vai ser genial! Talvez até ganhe o Nobel Intergaláctico por isso.
            ─ Que ideia maravilhosa é essa que vai permitir confinar para sempre uma população de mais de um bilhão de pessoas? Onde você vai encontrar um asteroide que comporte todo esse povo?
            ─ Já pensei em tudo. Eu sou um gênio! Tá lembrado daquele meu projeto da escola em que eu criei um asteroide com o mesmo formato da terra, em escala 1:12.000.000 ?
            O amigo dá uma risada como quem tivesse ouvido uma grande piada. Logo depois parece adivinhar os pensamentos do colega e fica visivelmente apavorado.
            ─ Não, cara, você não tá pensando em...em...isso é loucura! Não vai dar certo! Você não pode usar o laser COMPACTJET em uma parte dos humanos! Isso ainda não foi testado. Está certo que funcionou com animais, mas nunca foi testado em humanos.
            ─ Claro que funciona em humanos. Se funcionou com animais, fazendo com que reduzissem de tamanho na proporção desejada, sem que suas principais funções vitais fossem alteradas, por que não funcionaria com pessoas? Eu conheço uma gata linda que trabalha lá na sala de controle do laser que tá doida pra sair comigo. Só preciso convencê-la a me deixar lá por uma noite e tudo estará feito. É só apontar o laser para a direção da terra, programar a captação de humanos que estejam infectados pelo vírus N5J38, fazer a compactação deles e a teletransferência para o meu asteroide, que já estará em órbita, estrategicamente localizado no Sistema Solar. Não tem erro. A operação vai ser tão rápida que será imperceptível aos olhos dos terráqueos. Vão sentir falta de alguns, mas jamais descobrirão o que lhes aconteceu.
            ─ Cara, você é mais doido que eu pensava. Como sei que não vou conseguir tirar essa ideia maluca da sua cabeça, vá em frente. Só me deixa fora dessa que não quero ser cúmplice dessa loucura.
           ─ Tudo bem. A única coisa que preciso que você faça é que retarde a divulgação desses relatórios até que tudo esteja resolvido. Depois que o novo “planeta” estiver em órbita, aí você decide se conta pra eles. Talvez eu seja até promovido por isso.
            Sem perder tempo, o irreverente piloto aciona seu VDI (vídeo-contato instatâneo) e usa sua lábia para convencer a colega responsável pela sala de controle do laser a deixá-lo entrar. ─ Uma pena você estar de plantão hoje, gata. Tava muito a fim de te levar para um CR (Cine Real). Tem um filme sobre a ancestralidade dos dinossauros que tenho certeza você adoraria assistir e interagir, é claro.
            ─ Uma pena mesmo, piloto. Estou aqui nesta sala, só olhando para esses controles, totalmente entediada.
               ─ Estive pensando, e se eu desse uma passadinha aí para aliviar esse seu tédio?
            ─ Ah, não sei não. Se deixasse você entrar aqui estaria quebrando uma norma muito rígida e importante que é não deixar ninguém sequer olhar para todos esses equipamentos. É uma missão de muita responsabilidade, você sabe.
            ─ Viver também é saber a hora certa de quebrar normas, garota. Além disso, já trabalhei nessa ala e conheço muito bem toda essa parafernália. Esqueceu? O único risco que você vai correr me colocando para dentro é o de se apaixonar...rsrs.
            Apesar de inusitado e um tanto inconsequente, o plano do jovem cientista dá certo. Uma vez dentro da sala, ele a convence que gostaria de ver novamente aquele laser em ação e consegue disparar o canhão, voltado para Terra sem que ela perceba. É dessa forma que ele concretiza seu plano de diminuir o tamanho das pessoas infectadas na Terra e transportá-las para um miniplaneta idêntico, mas também com dimensões reduzidas.
            A partir de então, na Terra, de um dia para outro, a vida das pessoas se transforma de maneira substancial, permitindo que retomem seus afazeres diários, visando a preservação da vida, da saúde física e mental das pessoas e do planeta em sua totalidade.
            No comando espacial, os dois jovens são os únicos a saberem da operação realizada e estão aliviados pelo seu sucesso.
            ─ E não é que você conseguiu? Já vou cadastrar o seu novo planeta para ser observado pelo comando. Estou curioso para ver como as pessoas transportadas estão se saindo por lá. Como devem estar se sentindo habitando um planeta como o antigo, mas com uma população 70% menor? Aliás, como vai se chamar esse novo planeta?
            ─ Bom, depois de estudar com cuidado o comportamento dos infectados em toda a Terra, vi que a maior característica deles é uma tendência ao extremismo de direita que vinha provocando muitos conflitos entre toda a população mundial. Um clima perigoso de ódio e intolerância havia se espalhado e poderia levá-los ao caos em pouco tempo. Eles faziam uso de armamento pesado e de outros tipos de armas menos convencionais, como as FakeNews, por exemplo. Além disso, devastavam florestas, poluíam o ar, rios e mares e promoviam uma verdadeira caça às minorias, de pobres, negros e LGBTQI+. Desprezavam a Educação, a Saúde, a Tecnologia e a Cultura, tentando a todo custo retroceder em leis e avanços dessas áreas, obtidos ao longo da história. História essa que negavam e procuravam substituir por versões imaginárias, fruto do delírio que a enfermidade produzia neles. Enfim, baseado em meu estudo de personagens com maior relevância nesse cenário, escolhi chamá-lo de Planeta Bolsotrump.

#ficção
#literatura
#contos
#crônicas
#literaturanacional

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Mea Maxima Culpa

 

D

o alto do cais Rosália contempla o mar com um misto de tristeza e desconforto. Faz parte de sua rotina começar o dia dessa forma. Espera um dia despertar desse pesadelo terrível e voltar a visualizar águas puras e cristalinas, como em sua infância havia presenciado. As ondas batem insistentemente contra as estacas da estrutura, mas junto delas, uma infinidade de objetos faz o mesmo movimento. Garrafas plásticas, sacolas, pneus e outros sólidos, na maioria das vezes irreconhecíveis, parecem querer invadir todo seu espaço, procurando avançar cada vez mais ferozmente sobre o ambiente onde está o homem, parecendo conhecer sua responsabilidade por estarem ali à deriva.

                  Em 2040, ela com seus 56 anos, ainda não se conforma com o aumento da poluição nos mares e rios, com aquele volume exagerado de materiais descartados irregularmente que vêm sabe-se lá de onde, sabe-se lá de que tempo. É certo que eles tomaram conta das águas, habitando em maior número do que peixes e seres vivos aquelas que haviam sido no princípio o berço da humanidade. Atualmente estavam mais para túmulo de dejetos.

                 Apesar de sua insatisfação, como sempre, ela pede perdão a Deus por terem os homens colaborado e permitido que a situação chegasse a esse ponto. No fundo também se sente culpada por no passado não ter adotado hábitos sustentáveis em seu dia a dia. Enquanto algumas poucas pessoas iam ao supermercado com suas sacolas retornáveis, ela fazia uso das sacolas plásticas, trazia sempre para casa uma infinidade delas. Comprava com frequência alimentos processados e embalados em plástico e isopor. Não separava o lixo orgânico do reciclável e nem se preocupava com o descarte irregular de pilhas e resíduos eletrônicos.

             Achava um exagero todas aquelas medidas, ditadas por pessoas denominadas “ecochatos”. Malucos que viviam espalhando terror de que o homem estava destruindo o mundo. Que bobagem, pensava quando jovem. O mundo era tão grande! Como ela, sozinha, com seus hábitos, poderia destruí-lo?

           A resposta era tão simples. Como não tinha conseguido enxergar? A questão é que não eram apenas os seus hábitos e sim o de grande parte dos humanos no mundo todo. Bilhões e bilhões de pessoas, todas cegas e insensíveis ao perigo iminente.

             Agora, com toda aquela poluição no mar, nos rios e no ar, com a devastação de metade de toda a floresta Amazônica e de muitas outras pelo mundo afora e com todas as consequências que esse descaso havia provocado para a humanidade, com toda a escassez de água e alimento a que o homem estava submetido, só havia um caminho. Esse caminho era o de enfrentar a sua sina e buscar meios de sobreviver e sobrevivendo, procurar reverter todo aquele cenário maldito.

Conto inspirado na distopia #EsseFuturoNão! Rosália não é persongem do livro, mas poderia ser. Se gostar, curte, compartilhe. Gostando ou não, comente.

#distopias #literatura #contos

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O século XX nas páginas do século XXI



            A polarização da literatura no século em que vivemos, a sua diluição entre tantos canais que a evolução tecnológica nos propicia, além do fato de ela estar sendo produzida por um número muito maior de pessoas em todo o mundo, pode ser o motivo pelo qual não tenha se formado ainda uma corrente literária atual, nova, genuína do século XXI.

      Se no século XX tivemos movimentos como o Cubismo, o Futurismo, O Expressionismo, o Manifesto Dadaísta, o Surrealismo, o Modernismo, entre outros. Que rótulo teríamos hoje para o que está sendo produzido?

            Na verdade, o que vivemos talvez seja uma assimilação de tudo o que surgiu no século passado, muito mais do que uma nova criação, uma degustação com uma releitura do que existia, com nosso olhar, a partir de diferentes vozes e de minorias ou de grupos maiores que, porém, nunca tiveram espaço e representatividade na sociedade. Seria muito mais uma literatura de resistência, de postura política, de crítica social, do que uma mudança estética.

            O surgimento de correntes ou movimentos não foi na maioria das vezes de caso pensado. Foram simplesmente aparecendo a partir de pessoas que discutiam seus assuntos de interesse, que conviviam e tinham entre si algo em comum. Sem perceber, ou programar, foram criando o que os outros enxergaram como sendo algo novo.

         Mas o que realmente é novo? O Slam, por exemplo, movimento surgido entre jovens das periferias e guetos, visto como algo em ascensão, seria um movimento novo ou algo criado a partir dos repentes ou da literatura de cordel?

            Talvez haja uma diferença não tão estética, mas de origem. Enquanto no passado Euclides da Cunha falava sobre o nordestino sofrido e abandonado ou Clarice Lispector gritava em favor da mulher, atualmente surge a literatura da mulher negra lutando pelo direito de ter voz, a literatura dos índios tentando chamar a atenção do mundo para si e para seus direitos. O mesmo ocorre com os LGBTQ+ e com muitos outros grupos que passaram a lutar para serem ouvidos.

          A imensidão dessas vozes faz com que tenhamos menos nomes em destaque, grandes nomes, grandes poetas, como no passado. Isso não quer dizer que não tenhamos bons escritores, bons poetas, pessoas criativas e de talento. Há aqueles que se tornam famosos por conseguirem um maior espaço de exposição, mas esses não são necessariamente os únicos possuidores de talento ou criadores de grandes obras. O avanço tecnológico abre espaço para muitos, mas a luz nem sempre os ilumina com a mesma intensidade. Todos poderão amanhã ser denominados, quem sabe, pós-contemporâneos.

O texto acima é um resumo do que foi discutido no VII Encontro de Escritores e Leitores, realizado em formato virtual.

#literatura #correntesliterárias #séculoXX #séculoXXI


terça-feira, 4 de agosto de 2020

No meio da noite

            No meio da noite, na escuridão de meu quarto, minhas mãos, que involuntariamente repousavam entrelaçadas sobre meu peito, foram tocadas por alguém, que julguei ser um menino. Não consegui ver seu rosto, mas vestia uma camiseta de largas listras horizontais. O horror tomou conta de mim. Um grito forte e dolorido ficou preso em minha garganta. Em vez disso, consegui apenas um gemido. O desespero fez meu coração disparar. O ar já começava a me faltar, quando, felizmente, consegui despertar daquele terrível pesadelo.

            Horas antes havia participado de um interessante encontro literário, ocasião em que lemos e analisamos o terrível conto de Allan Poe, O Coração delator. Através dele, um sádico assassino narra em detalhes como planejou e executou a morte de seu eleito – pobre velho cuja única culpa era ostentar em seu rosto um olho azul esbranquiçado que enchia de pavor seu algoz, a todo o momento, lembrando-lhe um abutre. Ao dar cabo de seu plano e ocultar o corpo embaixo do assoalho, orgulhoso de seu feito, o narrador ainda conta como recebeu os policiais vindos para investigar um possível crime, do qual ele se gaba, por se considerar totalmente insuspeito.

            O conto de Poe termina com o assassino acusando-se a si próprio e apontando o local onde escondera os restos mortais da vítima, cujo corpo esquartejado ainda expõe, a sons cada vez mais altos, apenas para seu carrasco, o bater incansável de seu coração horrorizado e assustador.

            Foi com meu coração ainda disparado, que após despertar daquele horrível pesadelo, por algum tempo que não sei precisar qual, me mantive parada, estática, na mesma posição em que me encontrava no sonho, com medo, tentando encontrar uma explicação razoável para aquela ocorrência apavorante. A arritmia me apavorava ainda mais, com o receio de me levar a um possível enfarte.

            Passado esse tempo, que ainda não sei precisar o qual, restabelecido o batimento cardíaco normal e afastado um pouco o pavor, levantei-me, lavei o rosto e tomei um belo gole de água. Havíamos comentado ao final da noite, sobre a possibilidade de um pesadelo, ao abordarmos tema tão soturno e macabro. Além disso, eu havia devorado fora de hora, um misto quente caseiro, apesar de saber que dormir de estômago cheio, poderia me provocar pesadelos. Sim, foi o sanduíche, com certeza! De qualquer forma, implorarei ao professor uma mudança radical de gênero e de autor. Quem sabe, Vinicius de Moraes, Drummond ou Machado. Serão mais que bem-vindos!

#crônicas #contos #AllanPoe #pesadelo #literatura #ocoraçãodelator


domingo, 24 de maio de 2020

Distopia e Utopia na literatura e nas artes

Foi a pandemia do Corona Vírus que nos impôs a troca dos encontros presenciais pelos virtuais. Foi ela também que inspirou o tema do V Encontro de Escritores e Autores, realizado hoje em comemoração ao aniversário de primeiro ano do evento. Os quatro primeiros aconteceram em Guarulhos/SP durante o ano de 2019 e em janeiro de 2020.

Com a crise sanitária mundial provocada pela Covid-19 e uma crise política que vem ganhando força a cada dia, nos vemos em uma realidade distópica, com muitos e mais intensos ingredientes que os criados pela literatura.

Há escritores que se consagraram na utilização de distopias e utopias em suas obras. De Platão a Gabriel Garcia Marques, de Charles Chaplin a Geoge Orwell ou Aldous Huxley,  Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, The Beatles e The Doors, foram inúmeros os autores e obras citadas no debate. Seria a distopia real e a utopia imaginária? Ao menos, ao que parece, a utopia deixa de sê-la quando é alcançada e surgem então novos sonhos a serem perseguidos. Além disso, o que é distopia para uns pode ser utopia para outros e vice-versa.

Praticamente um consenso entre os participantes, na literatura não existiria uma escolha a ser feita, porque ambas, distopia e utopia, seriam complementares, coexistindo no cenário real e no imaginário. Haveria de se ter o equilíbrio entre elas. O que faria então uma obra ser boa ou ruim não seria exatamente a escolha de uma delas e sim como as duas estariam sendo tratadas na criação.

Pode ser que a atual situação de crise mundial e interna que vivemos faça brotar inúmeras obras nesse gênero. A própria situação a que todos estamos expostos, mesmo que não escritores proclamados, faz com que reflitamos sobre ela, sobre os sentimentos que faz brotar, sobre as angústias e os medos, as certezas e as incertezas, as previsões e especulações a respeito do futuro. Quanto mais incerto o futuro, maior a possibilidade de aparecerem histórias diferentes e inimaginadas.

Em tempo: Eu, particularmente, me aventurei nesse campo como iniciante, em meu livro #EsseFuturoNão! (já publicado em e-book e próximo a sair como livro físico). No meu caso, esse tipo de escrita surge da necessidade de externar a angústia de estar vivendo tudo isso.

#Distopia #Utopia #literatura #artes #pandemia #EsseFuturoNão!

terça-feira, 7 de abril de 2020

O chefe


Toda essa implicância de Bolsonaro com Mandetta me fez lembrar um antigo chefe. Quem conhece minha trajetória profissional sabe que comecei a trabalhar muito cedo, aos 14 anos e que, portanto, durante as quase quatro décadas em que tive a carteira assinada, foram muitos os chefes aos quais me subordinei. Desta forma, inútil tentar descobrir de quem estarei falando.
Logo no início já percebi que nossa relação não seria fácil. Ele era uma pessoa aparentemente tímida, carrancuda, mais novo do que eu e com pouca experiência na área. Tinha sido alçado ao cargo por obra do destino, mas era muito competente em sua função de origem e demonstrava disposição, capacidade para aprender e se desenvolver em sua nova posição (nesse caso, nada a ver com o chefe da nação). Isso o qualificava e sinalizava que a escolha da empresa havia sido acertada. Cá para nós, tal qual para o presidente, faltava-lhe humildade, mas esse atributo nunca foi muito requisitado para cargos de liderança.
Não demorou muito para eu perceber que tinha um problema. Ele não ia com a minha cara e não fazia a mínima questão de me esconder isso. Eu nunca entendi bem o porquê. Desconfiava que o meu conhecimento amplo em boa parte das rotinas que passaram a ser de sua responsabilidade, as quais eram novas para ele, o incomodavam um pouco. Confesso que eu também nunca fui uma pessoa de ficar paparicando muito chefes e colegas. Fazia sempre o meu trabalho, dava o melhor de mim, tratava a todos com respeito, mas me tornava mais próxima apenas de pessoas com as quais realmente me sentia bem.
Sempre tive opinião própria e quando estava certa que tinha razão, não media esforços para fazer valer a minha posição, mesmo que ela fosse contrária a meus superiores. Há pessoas que recuam quando se deparam com alguém com o poder de demiti-las. Eu nunca recuei. Batemos de frente muitas e muitas vezes. Apesar disso, nunca houve um grande desentendimento entre nós porque eu sempre procurava manter a calma, embora por dentro ficasse furiosa. Em uma ocasião eu o peguei nervoso com alguma coisa e apresentei a ele um problema. Sua reação foi agressiva e pela primeira vez (e última, felizmente) ele gritou comigo. As pessoas próximas se assustaram porque não podiam entender aquele ataque de fúria. Eu me segurei, me mantive firme e sai de sua sala como se nada tivesse acontecido. Continuei a trabalhar como se a gritaria não tivesse sido comigo. Acho que fui tão convincente que ninguém entendeu nada. Acabaram achando que os gritos talvez tivessem sido dirigidos a outra pessoa.
Estou certa de que vontade para ele me demitir não deve ter faltado. Aparentemente ele não o fez porque eu trabalhava muito bem e mesmo que não admitisse, precisava de mim. Da minha parte também houve momentos em que eu pensei em sair, mas gostava de meu trabalho e, além disso, precisava do emprego. Em muitos momentos sei que fui prejudicada por essa relação tóxica, deixando de ser apresentada a oportunidades que naturalmente deviam ter surgido, mas que foram boicotadas. Meu desempenho também deve ter sido afetado, é claro. Mas o tempo passou, ele deixou a empresa e alguns anos depois eu também saí.
Nunca mais tinha ouvido falar dele e nem me lembrava das situações ruins a que a pessoa dele me remetia, até nos encontrarmos recentemente, por acaso, num corredor de Shopping Center. Fiquei praticamente em choque quando veio me cumprimentar, como se tivéssemos sido grandes amigos, e por insistência dele, acabamos até dividindo uma mesa para um café.
Após contar como estava sua vida e de me perguntar sobre a minha, ao que eu respondi um tanto constrangida, puxou assunto sobre os tempos de trabalho em conjunto.
Para minha total surpresa, me disse que precisava me pedir desculpas, que sabia que não tinha sido correto comigo, que havia me impedido de ascender profissionalmente, por pura antipatia. Confessou que havia me cortado de listas para viagens, inclusive ao exterior, de treinamentos e muitos outros benefícios, que acabaram sendo distribuídos para seus bem queridos. Disse que lamentava muito por tudo, que reconhecia a minha competência e que sabia que suas ações haviam me prejudicado, a ele e também à própria empresa.
Foi um pouco duro reviver todas aquelas experiências dolorosas, mas ele estava ali, na minha frente, me pedindo desculpas. Pensei muito e estava decidida a perdoar. Infelizmente não houve tempo. Eu acordei antes...


segunda-feira, 23 de março de 2020

Diário de uma quarentena


Mesmo já tendo completado uma semana em quarentena, esta é a primeira vez que resolvo escrever sobre tudo isso que estamos passando. Ainda não tinha tido tempo. Sim, é verdade, embora em isolamento, ainda não tinha conseguido parar para refletir ou para escrever – o primeiro ato é sempre necessário para que o segundo aconteça. É fato que nem sempre as pessoas seguem essa sequência. Há quem escreva regularmente, sem nunca refletir.

Apesar de me considerar uma pessoa conectada, sábado passado assisti à minha primeira missa on line. Embora não seja exatamente uma novidade, para mim, sempre foi necessário estar presente na igreja, presenciar ao vivo os ritos religiosos. Cheguei até a criticar intimamente as pessoas que optavam por acompanhar as cerimônias pela televisão. Achava difícil entrar em estado de oração em frente a uma tela. Atualmente, diante da impossibilidade, essa rejeição acabou por completo e pude experimentar uma comunhão espiritual fortalecedora. Recomendo.

Sempre gostei de missas. Acho que herdei esse gosto de minha mãe. Ela me contava que desde muito jovem era a primeira a se levantar em sua casa e ir para a igreja para não perder a primeira missa do dia. Quando eu era pequena, ela me levava para a cidade quando tinha de fazer compras, ir ao médico ou resolver qualquer problema. Antes de voltar para casa era lei assistir a uma das missas na Catedral de Campinas ou na Igreja do Carmo. Ambas são lindíssimas com suas pinturas e imagens sacras. Quando não conseguíamos acertar o horário das cerimônias, ficávamos rezando lá dentro por um bom tempo. Eu não tirava os olhos das imagens dos santos espalhados pelos altares e capelas e analisava cada estátua, cada desenho, em todos os seus detalhes. Eles me inspiravam a buscar a santidade.

No sábado também tive de acompanhar uma pessoa da família e seu filho, de menos de um ano, em consulta em um dos prontos socorros públicos de Campinas. O menino tinha febre e acabou sendo diagnosticado com uma pneumonia atípica (nada relacionado ao Covid-19, felizmente).  Por segurança, fiquei na porta observando e vi mais profissionais de saúde do que pacientes. Ao menos ali as pessoas estavam respeitando a determinação de só circular em casos de extrema necessidade.

Aparentemente o mesmo respeito às determinações sanitárias não aconteceu nos atacadistas. Passei por um grande com o estacionamento lotado. Evitei fazer compras por todo o final de semana, mas não foi possível evitar a ida à farmácia, à padaria e a um hortifruti, compras que procurei fazer em tempo recorde.

Vi também alguns bares e adegas com aglomerações de jovens, aqueles que ainda não acreditam na necessidade de isolamento. Como a partir desta semana os estabelecimentos serão fechados por decreto, quem sabe essas pessoas se vejam obrigadas a cair na real.

A vinda de Campinas para Guarulhos foi tranquila. O movimento de carros estava realmente bem abaixo do normal.

Optei por me isolar aqui, em meu apartamento de segunda a quinta. Desta forma poderei produzir meus textos, tocar um trabalho iniciado até onde for possível, acompanhar os trâmites para publicação impressa de meu segundo livro e quem sabe colocar as leituras em dia. A oração também está em minha lista, é claro.

Tenho fé que iremos passar por essa provação e sair dela fortalecidos. Basta que mantenhamos a cabeça ocupada e a preenchamos com bons pensamentos. Que nos mantenhamos informados, pelas vias oficiais, de preferência. Que consumamos ou compartilhemos menos vídeos catastróficos e mais mensagens positivas. Que nos preocupemos mais com os outros, que pensemos em como podemos ajudar e façamos o que estiver ao nosso alcance para o bem comum. Que as rivalidades desapareçam, ou que ao menos sejam atenuadas, que haja entendimento e compreensão. Que haja união e respeito. E que Deus nos ajude.

Uma boa semana!