domingo, 26 de novembro de 2023

Revisionismos: O valor de cada tempo

 

Partindo-se do princípio de que revisionismo é o ato de reanalisar algo do passado, de forma a interpretá-lo com princípios atuais, alguns têm a opinião de que, quando falamos de obra literária, de obra de arte, esse ato não faria nenhum sentindo.

A obra de arte é e sempre deverá ser o que era quando foi criada. Não é para preservar a sua autenticidade que se procura proteger um quadro, uma escultura, da ação do tempo, mantendo-os em locais em que sofram o mínimo possível de ataque ou interferência externa? Ou então, quando a obra sofre algum dano ou desgaste, faz-se um esforço para restaurá-la, para que fique nas mesmas condições e aparência originais? Tudo para se preservar a obra.

Talvez o único que possa “revisá-la” seja seu autor, apesar de que, após muito tempo ter se passado desde a criação, represente lançar um novo olhar para ela e uma consequente transformação. Nesse caso, talvez ela esteja sendo destruída e servindo como matéria-prima para um novo produto.

Não há porque se substituir palavras na obra de Monteiro Lobato, ou mesmo “cancelar” um livro seu, por ter sido usada, na época da escrita, palavra que atualmente não é considerada politicamente correta. O melhor não seria utilizar notas de rodapé para explicar os termos e períodos de sua criação, destacando-se as divergências em relação à época atual?

O tempo muda padrões, subverte ordens, desmistifica conceitos, condena atos do passado, cria novas regras e estabelece novos valores. O que é beleza hoje para nós, não era, por exemplo, na era do renascimento. Dizem que no século XVII, ter os dentes cariados era símbolo de status, porque significava acesso ao açúcar, produto caro e escasso na época. Algo semelhante, mas no sentido inverso, acontecia com o bronzeamento. Ter a pele queimada do sol significava trabalho de campo e a pele alva, nobreza e status superior. Atualmente cultua-se a pele bronzeada, de forma saudável.

Com o surgimento da fotografia, houve uma mudança de padrão nas artes plásticas, especialmente na pintura, que passa a não ser mais utilizada para registrar a realidade, e a ser mais uma expressão da realidade, que pode até ser distorcida para se criar um efeito visual interessante e até mais valoroso. Um dos exemplos dessa mudança foi o impressionismo, que saindo daquela cultura mais acadêmica, foi ridicularizado na época, mas que com o passar do tempo, foi adquirindo grande valor. Vemos isso com as obras de Monet ou do pós-impressionista Van Gogh, que não vendeu um quadro em vida, mas que atualmente têm valor inestimável. Após a morte de Shakespeare, sua obra caiu no esquecimento, só vindo a ser recuperada já nos séculos XIX e XX. Tudo isso acontece porque a sociedade vai se revisando.

Vivemos na época do cancelamento, que acontece muitas vezes com obras, artistas, que viveram num tempo diferente do nosso. O mesmo acontece com personagens da história. Um caso recente foi o fogo ateado em uma estátua do Borba Gato, um bandeirante, cuja atuação atualmente está associada à exploração e não ao desbravamento, como anteriormente. Mas atear fogo seria o melhor caminho? Além de ser uma atitude que remete ao período de inquisição, não estaríamos querendo apagá-lo da história, privando gerações futuras de conhecer nosso passado? Não seria o caso de apenas mudar a sua localização para um museu, que trouxesse detalhes do tempo e de sua ação na história do país?

Na educação, em sala de aula, não é negável que o uso de obras que contenham palavras e expressões que não sejam atualmente aceitas, deve ser feito com muito cuidado e atenção. Explicar detalhadamente o contexto de sua criação se faz necessário, para que os mais novos entendam e conheçam realidades distintas.

Vivemos também uma política de cancelamento de caráter ideológico, em que ao mesmo tempo um lado incendeia uma estátua e o outro condena, por exemplo, os escritos de Paulo Freire, autor que, aliás, foi revisor de sua própria obra. Sempre que se procura cancelar algo por ideologia, com alguma razão ou não, estaremos agindo de maneira contrária aos preceitos democráticos.

Cada coisa no seu tempo. Que toda obra seja preservada e contextualizada!

“O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir” (Mário de Andrade, poeta e crítico literário brasileiro).

*O texto acima foi criado com base no que foi discutido no XXII Encontro de Escritores e Leitores, cujo tema foi Revisionismos: O valor de cada tempo. Em 24/11/2023, no espaço de eventos do Alameda Café, Guarulhos/SP.

#revisionismo #arte #cultura #história #ideologia #literatura



quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Modismos Sociais e Estéticos na Literatura

 



    A moda é um conjunto de opiniões, gostos, assim como modos de agir, viver e sentir coletivos. O modismo tem a ver com aceitação, com a necessidade de ser aceito. Os primeiros modismos que podemos citar em processos de escrita são aqueles configurados pelo uso de palavras ou expressões da “moda”. Nós vivemos em uma cultura viva, em que o idioma também é vivo, em que novas palavras são constantemente incorporadas ao vocabulário ou usadas em sentido diferente do original. A questão é que alguns termos acabam se tornando esvaziados ou se tornam clichês, de uso forçado. Nós escritores precisamos ficar atentos a eles, assimilar o que achamos importante ser assimilado, mas nem sempre nos render a imposições da linguagem. Palavras como “resiliência”, “ressignificar”, por exemplo, tornaram-se de uso frequente. O mesmo acontece com termos como “não é sobre... é sobre...”, “ato de resistência” etc.

   Se a pessoa não usa esses termos, parece não ser “in”, parece estar “out”. A utilização exagerada deles pode nos levar a uma vala comum de linguagem, em que a palavra passa a não dizer aquilo que ela deveria dizer.

    Quando a primeira pessoa definiu uma mulher como “guerreira”, deve ter soado bem, mas quando 500 mil pessoas começam a falar dessa mesma forma a respeito de alguém, acaba-se desvalorizando a metáfora. Começamos a pensar: será que não haveria outra palavra para usar nesse caso? Usa-se “foco” demais, o que aconteceu com a palavra “concentração”? Nós a perdemos de vez? Usa-se demais “empoderamento”, será que queremos realmente que alguém em especial tenha poder e outros não? Qual o sentido real dessa palavra? Não seria “autonomia” um termo melhor para o que queremos expressar?

    Tornou-se moda também que a mulher escreva sobre seus anseios, as lutas em nome das mulheres guerreiras, mas isso não pode ser uma imposição para uma mulher escritora. Nada impede que ela escreva sobre o que quiser, mesmo que não esteja levantando uma bandeira.

  Já o termo “narrativa” foi roubado da literatura para ser usado na política, com o significado de versão, com carácter ideológico e polarizado: “a narrativa da esquerda…”, “a narrativa da extrema direita” etc.

    O gênero romantismo está associado à subjetividade, ao nacionalismo, um termo ligado ao ideal libertário, mas deixou de ser entendido assim atualmente. As pessoas não sabem o que é esse romantismo. O próprio romantismo virou moda, tornou-se clichê.

    Quando aderimos a esses clichês, nos tornamos mais um produto de prateleira, feitos em série, do que escritores autênticos. Por outro lado, existe uma necessidade da natureza humana de se agregar. Ninguém quer viver sozinho. Porém quando começamos a ficar seriados demais, parecemos estar atentando contra a nossa singularidade.

    Os modismos aparecem nos meios de comunicação, nas redes sociais. Distopias, haicais inexpressivos, um amontoado de palavras agrupadas para atender a “moda”, sem aprofundamento na origem desse tipo de poema, sem estudo sobre o que levou a essa forma de expressão, sobre as influências ao longo da sua história. 

    Autoficção, um termo da moda, já não existe desde sempre?  Nas cavernas os homens não estavam fazendo autoficção? Qual o autor que não está presente em sua obra? 

   Algo que está em moda são as oficinas de escrita criativa. Para que tenham sucesso e ajudem realmente alguém a se aprimorar na arte da escrita dependerá muito de quem será o formador. Se coloca regras demais, rigidez demais, vai criando uma tendência que pode não ser boa. Lembrando Drummond, se o poeta encontra uma pedra no meio do caminho e senta nela, ele nunca mais vai sair de lá. A fórmula pode ser um tremendo obstáculo para o autor. Devemos fugir dela. Ela pode servir para um poema, mas será para uma só vez .

    Ainda sobre o Haicai, sobre sua fórmula 5-7-5, Bashô fala que se tem de aprender todas as regras, para depois descartá-las. Depois de pegar a essência, o autor abandona a rigidez e inventa seu caminho.

  Outro exemplo de modismo, foi a literatura engajada que vimos muito durante a pandemia.  Parecia um modismo porque as pessoas estavam sempre falando das mesmas coisas. Nunca a serviço de um espanto, de um impacto poético ou de um exercício puramente lírico. O exercício da poíeses, de criar mesmo, sem estar em função da conjuntura. Mesmo assim, não podemos deixar de reconhecer a importância de tais exercícios poéticos por conta de demarcar uma situação vivida. De datar aquilo que passamos, ainda que tenha se tornado clichê.

    Porém devemos ter em mente que sempre que atendemos demais a apelos que só dizem respeito ao presente, corremos o risco de ter algo que não faça tanto sentido no futuro. Com a crônica pode até funcionar, mas outros gêneros que ficam datados demais, ficam apenas como um retrato daquele momento.

     Mas o que, então, deve-se esperar de um bom texto, um bom conto, um bom poema? Se não provoca espanto, se não tem revelação, nada que demonstre algum trabalho poético, de lirismo, não é verdadeiro. O mesmo com as Aldravias, seis palavras, uma em cima da outra, precisam ter algo de novo, de especial, produzir um resultado criativo. Um miniconto deve ter uma narrativa concisa, mas a maioria não chega a isso. Uma frase não é um miniconto. 

    A moda é boa pra quem cria. Mas é péssima para quem a segue. Quem cria, se notabiliza, ganha dinheiro, fica famoso, quem segue está sempre um passo atrás, nunca vai chegar lá. A moda é inimiga da originalidade. Nada contra quem busca o que está “vendendo” e opta por produzir o que está na moda. É um direito de cada um. Mas se não é o que queremos, devemos procurar a nossa própria voz para produzir a escrita do nosso jeito, tentando não nos render aos modismos. Percorrer a estrada não trilhada pode fazer toda a diferença, como no poema “A estrada não trilhada”, de Robert Frost.

    Ainda que optemos por um tema da moda, o importante é encontrar um jeito original de se falar sobre ele, seja na poesia ou na prosa. Quando se faz um poema, seja qual for o assunto, o que vai prevalecer é a demanda da lírica e sua essência. Além disso, uma narrativa tem que causar um impacto no leitor. O problema não é o tema e sim a necessidade de fugir do lugar comum.

  Os temas em geral são os mesmos que vêm sendo tratados historicamente de forma universal. O fato está na capacidade de se expressar de forma genuína, autoral, única. Quando se recorre ao uso do termo da moda, não se está escrevendo com as suas palavras. Para você ser genuíno em sua criação artística, precisa se autoconhecer. E é aí que está a maturidade do artista que precisa conhecer a si mesmo para trazer uma expressão que às vezes é coletiva, um tema aberto a todos, de uma forma genuína. Ao mesmo tempo não dá para rompermos com a língua existente. Não dá para se falar com um formalismo antigo, ninguém vai entender. Precisa ser compreendido. Essa busca de se fazer compreendido, mas de forma original é o desafio maior do autor.

    A própria indústria, o próprio comércio, nos impulsionam a seguir a moda. Não se escapa muito de ser um pouco como nossos pais, já cantava Elis Regina. Estamos sendo impelidos a viver uma vida coletiva. Mas não podemos abrir mão da singularidade.

    Ressalvando-se o direito das pessoas se expressarem, mesmo que não seja de uma forma genuína, autêntica, que possamos nos esforçar para criar à nossa maneira. O modismo não resolve a arte.

 

Dica de Filmes:

Mary Shelley

Sociedade dos Poetas mortos

 

Dica de Livros:

Madame Bovary - Gustave Flaubert. 

Os sofrimentos do Jovem Werther - Johann Wolfgang von Goethe

 

Obs.: O texto acima resume o resultado das discussões durante o XXI Encontro de Escritores e Leitores realizado em 22/09/2023 pelo Google Meet. 

#literatura

#moda

#poesia

#arte

#escritacriativa

domingo, 2 de julho de 2023

VANGUARDAS: A ESTÉTICA DA RUPTURA

 


Quando o termo vanguarda (do francês, avant-gard), o que marcha na frente, portanto, de origem militar, foi associado às artes, no início do século XX, foi para identificar aqueles que “marchavam” na frente, que iam abrindo caminhos, a partir de uma ruptura de conceitos, dogmas, formas, linguagens etc.

Entretanto, se formos analisar em termos de ruptura, podemos dizer que uma das mais importantes é de bem antes, a partir do Renascimento, em que há um rompimento com o teocentrismo e a adoção do antropocentrismo, passando o homem a ser o centro do universo.

Na pintura e na escultura começa-se a se preocupar com a escala, com a profundidade, com os detalhes, uma busca pela perfeição. Depois com o Impressionismo já se abandona a necessidade de um quadro imitar a realidade. Passa-se a valorizar mais o Sol, que revela as cores.

Outro período importante de ruptura veio pelo Romantismo, não aquele ao qual nos remete a palavra, entre duas pessoas, mas aquele diretamente relacionado a grandes revoluções sociais, à revolução francesa e todo o conceito de liberdade, igualdade e fraternidade.

Na literatura, o Simbolismo é o primeiro movimento que começa a romper com a lógica, a abandonar o pensamento científico europeu.

E é de rompimento em rompimento que vamos vendo o desenrolar dos movimentos de vanguarda, Expressionismo, Cubismo, Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo. Se pensarmos na pintura abstrata do Modernismo, a poesia visual, a literatura Beatnik, a psicodelia, o Tropicalismo, tudo isso chegou para se opor a algo anterior, para fazer diferente do que vinha sendo feito.

Sem a pretensão de rever aqui em detalhes todos os movimentos classificados como de vanguarda e suas características relacionadas a rupturas, a principal proposta do encontro foi a de tentar detectar algum movimento da atualidade que tenha as mesmas características vanguardistas.

Depois de tanta fragmentação, da modernidade líquida de Bauman, talvez não haja mais o que romper, o que dissolver, numa época em que tudo é líquido e volátil. Talvez seja um movimento de surgimento, de criação e não de quebra de algo já existente.

Na tentativa de apontar obras mais recentes como trabalhos de vanguarda (ou os que mais se aproximam do conceito de ruptura que caracteriza a vanguarda), tivemos dificuldades de fazê-lo na literatura, mas chegamos a filmes como "Matrix", "Show de Truman" e "Dogville", que trataram de temas relacionados à interferência do mundo virtual em nossa suposta realidade. Os diretores conseguiram na época algo novo ali... "Dogville", por sua vez, desafiou por fazer um filme com a linguagem do teatro mesclada com a da própria literatura. Sem uma análise profunda, não podemos afirmar que foram os primeiros a fazer isso, condição que seria necessária para que os considerássemos de vanguarda, mas são, sem dúvida, filmes que ousaram...

E se fôssemos analisar mais a fundo os trabalhos mais atuais, certamente encontraríamos alguns classificados pela crítica como inovadores.  Mas até que ponto?

E você? Tem se deparado com alguma criação literária, seriado, filme, arte em que tenha observado uma ruptura, que possa ser denominada uma “nova vanguarda”?

*texto elaborado com base nas discussões em torno do tema vanguarda no XX Encontro de Escritores e Leitores, dia 30/06/2023, das 19h às 21h, no Centro Britânico, em Guarulhos. Como sempre, a mediação foi de César Magalhaes Borges, com a presença de Rogério Britto, Guilhermina Helfstein, Alba Bela, Janete Brito, Talita Salvador, Valmir de Souza, Luka Magalhaes e Fátima Gilioli.

#vanguarda #arte #literatura #ruptura #escrita #escritores #leitores #livros 

 


terça-feira, 2 de maio de 2023

Verossimilhança: a Invenção de Realidades

 


    Como declara Fernando Pessoa em seu poema Autopsicografia, o poeta é um fingidor. Na verdade, não apenas o poeta, bem como todo artista que cria uma obra fictícia, seja ela escrita, encenada, declamada, pintada, esculpida etc. Mas exatamente por ser fingimento, ela precisa parecer verdadeira. Precisa ser coerente dentro do sistema proposto pelo autor.

   Uma obra é a invenção de um mundo de quatro paredes. Se uma dessas paredes é “quebrada”, ou seja, se algo no cenário, no diálogo, na letra ..., não é verossímil perante o que foi criado, se um acontecimento não parece possível de acordo com a sequência estabelecida, isso pode interferir, negativamente, na integridade da obra.

   Como se sente um telespectador atento que assiste a um filme cuja história se passa no século XVIII e se depara com um tênis All Star (item de vestuário que só foi inventado em 1971) no armário da rainha? Se antes acreditava no que via, sente-se imediatamente deslocado da época encenada e trazido abruptamente para um passado já não tão distante – quarta parede quebrada.

   Como o leitor poderia acreditar em uma história supostamente acontecida e narrada em 1916, se uma das personagens aparece dirigindo um Monza (lançado nos anos 80), ou pior, se uma das cenas se passa na porta de uma sala de TV (eletroeletrônico estreado oficialmente em 1926), ou ainda alguém é descrito atendendo a um celular (invenção de 1973)?

   A lista de incoerências encontradas por aí é extensa. Pode ser em um poema, um romance, um filme, uma letra de música...

  Não importa quão longe foi o autor em sua ficção. Basta que ela seja coerente.  “O planeta dos Macacos”, por exemplo, foi uma criação sem furos e amarrada até o final. Realmente, macacos não falam, e seres humanos não são escravizados por eles. Mas naquele universo, isso faz todo o sentido.

  Como exemplos de coerência e verossimilhança na literatura podemos citar Machado de Assis, no conto "A Cartomante", e Guimarães Rosa, no romance "Grande Sertão: Veredas". A estrutura narrativa nessas obras prende o leitor e o leva a acreditar em um desfecho que se mostra surpreendente, sem perder a coerência interna.

  Portanto, a verossimilhança acontece em uma obra, por essência, bem resolvida, independentemente de seu período, de Homero aos dias atuais. Pois essa verdade interna de qualquer obra é algo que o autor deve cuidar, zelar, para dar realidade, originalidade à sua invenção: se narrativa, poema ou drama.

  Há casos, porém, em que acontece quebra intencional da “quarta parede”. Como no humor, nonsense... exemplicado pelos “The Monkees” e Monty Python. Houve essa quebra também em “A Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen e em Macunaíma, de Mario de Andrade. "O fabuloso destino de Amélie Poulain”, do diretor Jean-Pierre Jeunet, mostra a personagem Amélie em suas fantasias, quebrando a quarta parede de uma maneira surreal e incrível. O mesmo acontece no livro "Memórias Póstumas de Brás Cubas" cujo o personagem central é um "defunto-autor" que conversa com o leitor, enquanto narra sua vida. E há também a pintura de René Magritte "A Traição das Imagens", demostrando que a representação de algo (o cachimbo) não é necessariamente esse algo... Como na música do Djavan sobre o universo e dinossauros – uma “viagem” de estilo.

 

Obs.: Artigo criado com base nas discussões em torno do tema do XIX Encontro de Escritores e Leitores - "Verossimilhança, a invenção de realidades", pelo Google Meet, 28/04/2023.

 

#verossimilhança; #ficção; #quartaparede; #arte; #poesia; #música; #cinema; #literatura

 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O bom samaritano

“Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois foram embora e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele caminho; quando viu o homem, passou adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu e passou adiante pelo outro lado. Mas um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e teve compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal, e o levou a uma pensão, onde cuidou dele”. Lucas 10,30-34.

Um gay ia caminhando pela avenida Paulista, quando foi abordado e espancado por uma gang de SkinHeads. Depois que ele estava desacordado de tanto apanhar, foram embora e o deixaram ali, quase morrendo. Um pastor que passava pela mesma calçada, viu e o ignorou, seguindo adiante, a caminho do culto. Um político também passou e desviou do caminho. Afinal, nem era época de eleição. Um morador de rua o viu e teve pena dele. Jogou água em seu rosto, e achando o celular em seu bolso, o usou para chamar uma ambulância.

Um torcedor do Palmeiras, saindo do Allianz Parque, foi cercado por torcedores de um time rival e seriamente agredido com socos e pontapés. Abandonado quase sem vida em uma praça, foi avistado por um advogado, que não quis perder tempo em socorrê-lo, pois tinha uma importante audiência no fórum. Uma bela mulher chocou-se com aquele corpo todo ensanguentado, fez uma foto para postar no Instagram e seguiu para o salão para fazer as unhas. Foi socorrido por um Corintiano que vestia a camisa do seu time, que tinha acabado de ganhar de aniversário.

No parágrafo acima, apenas substitua o palmeirense por uma pessoa de direita e o corintiano por uma de esquerda. Depois faça o inverso. Coloque o de esquerda no lugar do palmeirense e o de direita no lugar do corintiano. Tudo é possível.

Uma mulher negra estava sendo impedida de descer pelo elevador social de um prédio. A moradora que a impedia disse que o seu lugar era no de serviço. Alguns ocupantes do elevador ficaram inertes, alegando pressa para descer. Um jovem influencer fez um vídeo na mesma hora e o postou, fornecendo à vítima material para processar a criminosa por injúria racial.

Uma moradora de rua foi espancada por seguranças, quando tentava furtar dois pacotes de carne seca de um supermercado. Algumas pessoas que viram a cena em vídeo a acusaram de ser uma ladra qualquer e apoiaram os homens que haviam batido nela. Muitos se apiedaram de sua situação e da violência sofrida.

Existem muitas e muitas versões para essa parábola. Qual você conhece?

 

#crônicas #críticasocial #violência #fome

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Quando tudo é arte, nada é arte

 


Mais uma vez, em nosso Encontro de Escritores e Leitores, somos provocados a discutir o que é arte, refletindo também, na verdade, sobre o que não é.

O assunto surgiu a partir do livro “Argumentação contra a morte da arte”, de Ferreira Gullar, em que ele grafa a frase “Quando tudo é arte, nada é arte”.

Não cabe aos escritores o papel de determinar de maneira impositiva “isto é arte”, ”aquilo não é”. Na verdade, estamos muito mais para ser julgados dessa forma, por nosso trabalho, do que para julgar. Entretanto, podemos refletir sobre isso, tanto para termos uma visão mais ampla dos mecanismos que envolvem a produção e a exposição de arte pelo mundo, quanto para que nós mesmos possamos avaliar aquilo que estamos produzindo.

De acordo com Gullar, o movimento impressionista do século XIX não foi bem compreendido pelos críticos, que fizeram pouco dele, mas, que passados poucos anos, acabou ficando evidente que havia grandes gênios entre os artistas da época. Monet, Van Gogh, Renoir... são exemplos incontestáveis disso.

Desde então, os críticos passaram a não ter tanta coragem de falar mal de qualquer novidade que surja, elevando ao topo manifestações de qualidade muitas vezes questionáveis. Quando tudo que é novidade passa a ser celebrado, há uma perda dos parâmetros que definem o que é bom do que não é.

O fazer do artista é construir-se fora de si mesmo, tirar algo de si, construir uma linguagem. Mas para isso deve haver um processo criativo, partir de muito trabalho, pensado e  executado, e principalmente baseado em estudos, em execução de técnicas.

Tem de haver a intencionalidade. O “acidente” é bom e pode acrescentar brilho a uma obra, e fazer com que se destaque positivamente perante outras. Um exemplo foi o momento da gravação pelos Beatles de uma canção chamada I feel fine. John Lennon esqueceu a guitarra ligada e a encostou no amplificador. O resultado foi um som de microfonia, que casou bem com a canção e acabou sendo incorporado a ela.

Um tipo de acidente como o citado pode ajudar na composição de uma bela obra, mas não é o que determina por si só a sua criação. Para que ele seja incorporado, vai depender da sensibilidade do artista. Um simples espalhar de tinta sobre uma tela, impulsionada pela força da gravidade, não fará dela um grande quadro.

Muitas obras de arte atuais são criadas a partir de técnicas em que o autor não se constrói tanto fora de si, não se coloca tanto na obra, não retira tantos elementos do seu interior para compô-la. Embora, muitas vezes, encontre uma forma diferenciada de criação, o faz muito mais de maneira mecânica.

É claro que Marcel Duchamp encontrou uma maneira inusitada ao levar um urinol para o Salão de Artes de Paris. Mas foi um gesto de provocação, que tinha muito a ver com o futurismo que estava surgindo na época, em que havia grande valorização pela produção industrial.  Além disso, era um excelente pintor, executor de belos quadros. Também queria dizer que um objeto, deslocado de sua função original, pode assumir uma função estética e virar arte. Mas não dá para concluir que qualquer objeto alcançará esse objetivo meramente por seu deslocamento.

Para compor, um músico precisa de um mínimo de conhecimentos prévios para tal. Não é qualquer um que sai por aí escrevendo um poema. Ainda que seja um poema surrealista, ele precisa conhecer o surrealismo. Ainda siga a escrita automática surreal ou a prosa espontânea dos Beatniks. O mesmo acontece na dança, na escrita, no teatro etc. Todas as modalidades de arte precisam desse embasamento teórico.

Estamos vivendo a era da Inteligência artificial. Chat GPT (Generative Pre-trained Transformer) é uma tecnologia de processamento de linguagem natural desenvolvida pela OpenAI. Ele é um modelo de linguagem treinado com milhões de exemplos de texto, o que o torna capaz de gerar novos textos de forma autônoma e responder a perguntas em diversos idiomas.

Quando um robô “escreve” um texto, cria uma redação, uma história, uma música, isso não quer dizer que esteja fazendo arte. O que ele faz é resultado de uma experiência artificial. Inexiste o processo criativo.

Essa tecnologia atual lembra de longe também à técnica dadaísta, de se construir poemas, na qual se coloca palavras aleatórias em um saco, que, à medida que vão sendo retiradas, vão se transformando em poesia.

O olhar de quem desfruta da arte tem muito a ver com o que ela é. A arte precisa ter beleza. Não a beleza tradicional, padrão, mas uma beleza reveladora. A beleza muitas vezes da dor sublimada, transcendida. Expressão criativa é muito saudável, principalmente para quem faz. A arte é uma expressão criativa que não reflete apenas quem cria, mas também inúmeras pessoas que se sensibilizarão com ela. É importante que ela tenha conteúdo e estética e que revele algo.

Conteúdo e estética sozinhos não fazem arte. A arte é tomada de consciência.

#escritores #literatura #artes #leitura #criação 


sábado, 28 de janeiro de 2023

WhasApp - como a gente usa?

Por que será que hoje em dia as pessoas acham que podem resolver tudo pelo WhatsApp?

Nada contra essa rede social. Pra falar a verdade, eu até a uso com frequência. Mas utilizo para o fim que acho que ela deva ser usada: para falar diretamente com familiares e amigos, sobre assuntos que não são tão urgentes, em lugar de ligar e correr o risco de interromper algo que a pessoa esteja fazendo (detesto quando acontece comigo!). Nada de ficar esperando resposta na hora, vendo se visualizou ou não e essas paranoias todas. Também participo de alguns grupos, novamente de familiares, de amigos, de pessoas com interesses comuns etc.

Só que tem um lado maléfico dessa rede que faz com que as pessoas percam a noção do que é se relacionar em comunidade ou em sociedade. Parece que estão em uma arena, prontos a atacar quem quer que seja, sem qualquer risco ou dor na consciência.

Primeiramente, está cheio de gente por aí que passou a se “informar” por WhatsApp, ou por sua versão russa, o Telegram. E o pior é que acham que uma “notícia” recebida por essas redes é mais confiável que qualquer jornal televisivo, impresso ou mesmo virtual. Quem já não ouviu de um conhecido: “Ah, não assisto mais nada na TV, não perco meu tempo”. Como jornalista, embora eu não atue na área, sinto-me tremendamente ofendida quando ouço algo parecido. Afinal, sei o quanto trabalham os profissionais desses veículos para tentar buscar e levar a informação a todos.

É claro que ninguém é perfeito, nem os veículos são, embora a maioria busque a melhoria contínua. Há sempre uma subjetividade impregnada muito difícil de anular, quando não há ações tendenciosas a serviço de interesses obscuros. Não vem ao caso me aprofundar nas diversas teorias de comunicação que já se aprofundaram nesse tema. Basta dizer aqui que, se corremos o risco de nos equivocar a respeito de um assunto, tomando como base o noticiário oficial, como confiar cegamente numa postagem de aplicativo, quase sem qualquer controle, onde cada um publica o que quer?

Por isso, pode ser óbvio, mas o que eu faço e aconselho é que ouçam, leiam, assistam tudo o que puderem. Leiam tanto o jornal preferido, quanto aquele com que não se identificam tanto, sintonizem as suas rádios preferidas e também aquelas que não lhes agradam muito, destinem parte do seu tempo a assistir à emissora da qual são fãs, mas deem uma espiada também naquela outra... Façam isso, alternadamente, durante o tempo que lhes convier (jamais o tempo todo!) e ponham o seu raciocínio, o seu conhecimento, o seu sexto sentido, tudo isso junto pra funcionar. Depois, tirem vocês mesmos as suas conclusões. Construam as suas opiniões, sem que ninguém as traga prontas pra vocês.

Mas essa crônica está ficando longa demais e não abordei ainda o que pretendia. O que me motivou a essa reflexão foi me deparar com um monte de ofensas e acusações que encontro vez ou outra, em grupos de condomínio. Por que será que as pessoas acham que estão exercendo a sua cidadania, fazendo a sua parte como condômino, falando  mal do síndico ou da forma como o condomínio vem sendo administrado, ou da forma que acham que ele vem sendo administrado, apenas com o que querem enxergar, ou no que querem acreditar, sem ao menos conhecer com profundidade o seu trabalho, suas atribuições e ações, sem frequentar reuniões e assembleias (sim, pasmem, frequentar assiduamente e de forma participativa), sem nunca, nunca mesmo, ter lido o regulamento, a convenção, sem ter procurado analisar com cuidado um livro de prestação de contas, ou depois disso questionado, com educação e respeito, alguma ação com a qual não concordem. Dá trabalho isso, né? É mais fácil postar achismos, fofocas, coisas que ouviram falar, conclusões precipitadas e por aí vai. Causa mais impacto, dá mais ibope, tem consequências mais rápidas...

Consequências. O ponto ao qual eu queria chegar. Sim, pense nelas. E pense na sua responsabilidade em relação a elas. Só isso.

 

 


domingo, 1 de janeiro de 2023

Duas posses

 

Hoje busquei algumas fotos antigas, de primeiro de janeiro de 2003, quando participei de uma das experiências mais emocionantes da minha vida – da primeira posse do presidente Lula.

Embora eu não fosse filiada a nenhum partido político, a ascensão ao poder por um homem de origem humilde, com uma trajetória de luta por causas sindicais, estigmatizado pelo preconceito e chamado de analfabeto por pessoas que desacreditavam de sua capacidade, fizeram com que me decidisse a aceitar o convite de uma amiga e acompanhá-la naquela aventura em Brasília. Foi, sem dúvida, um grande momento para o Brasil, ofuscado depois por fatos que se sucederam.

As imagens de hoje, primeiro de janeiro de 2023, capturo pela televisão, de onde ouço os discursos emocionados de um presidente iluminado, que recebe uma nova chance de, conforme suas próprias palavras, “fazer melhor do que antes”. A promessa é de recuperação da economia e combate à fome e à desigualdade.

Por todo o retrocesso e barbaridades que presenciamos nos últimos quatro anos, pelos riscos que nossa democracia correu ao ter grande parcela da população tomada de uma cegueira absurda e louca, dando voz a representantes de discursos e atos repugnantes e inaceitáveis, confesso-me também emocionada e com minhas esperanças renovadas de que o momento para o Brasil é único e promissor.

Quero acreditar que Lula e PT conhecem sua verdadeira parcela de responsabilidade pelo desgoverno a que fomos submetidos e que estão agora realmente dispostos a governar de maneira coerente com seu discurso e com suas bandeiras, para que nunca mais passemos por tão penoso e perigoso momento, a “era de sombras” a que acaba de se referir o presidente em seu segundo discurso na cerimônia de posse.

Sabemos que nada será fácil, mas que também “nunca antes na história deste país” tivemos as condições mais favoráveis para “virar essa página” e chegar ao nosso Brasil dos sonhos. Que assim seja!