terça-feira, 23 de abril de 2019

Um belo concerto e coisas que precisam de conserto




Uma mistura de satisfação e tristeza. Foi o que senti ontem ao passear no final da tarde pelo centro de São Paulo. O programa era especialíssimo – um concerto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, OSESP, na maravilhosa Sala São Paulo. Eu simplesmente não consigo mencionar esse local sem utilizar o adjetivo “maravilhosa” (para a sala). Muito bom o jornal Folha de S.Paulo ter oferecido essa oportunidade a seus assinantes.

O horário de início da apresentação era 20h30. Tínhamos de estar lá a partir das 19h para pegar os ingressos. Saímos muito cedo de Guarulhos para evitar o trânsito do final do dia. Estava indo passear e não queria me contaminar com o estresse dos que voltam todo dia do trabalho disputando espaço por ruas e avenidas com milhares de carros, caminhões, ônibus, motos.

O resultado de nossa antecipação foi ter mais de três horas livres para explorar aquele espaço tão rico de história e de vida. Histórias e vidas nem sempre felizes, é verdade. Nosso primeiro destino foi o Memorial da Resistência, logo ao lado, na Pinacoteca. Um excelente programa para quem quer conhecer uma das partes mais tristes e nebulosas da história de nosso país. Recomendo para quem nega a história também, atitude um pouco em moda ultimamente. Alguém já disse que contra fatos não há argumentos. Ali você fica exposto a fatos, fotos, cartas, depoimentos em vídeo, corredores sombrios e celas do antigo Deops. Locais por onde muitas pessoas entraram e de onde muitas nunca saíram vivas.


Para aliviar um pouco a tensão, percorremos também a exposição de Artur Lescher, nos miramos em seu espelho líquido e admiramos suas engenhocas metálicas. Depois, um passeio para observar acervos indígenas, que continuam ainda mais com sua cultura ameaçada.

Nossa brincadeira por ali acaba às 18h, horário de fechamento do museu. Nós tínhamos tempo, mas, entendemos que os funcionários precisavam ir para casa. Fizemos, então, uma caminhada até a Estação da Luz. Para chegar àquela outra maravilha de cenário fomos esbarrando em pessoas travestidas de zumbis, com seus cobertores nas costas e seus cachimbos na mão. Escravos do crack. Sensações de dor, impotência e medo foram se alternando em mim. Houve também um desconforto em caminhar por aquelas calçadas molhadas de urina, que exalavam um desagradável odor. Fazíamos turismo em meio aquilo tudo.

Sim, a Estação da Luz continua lá, imponente e bela. Impossível não parar em cima da ponte e ficar observando as pessoas embarcando nos trens. O local onde funcionava o saudoso Museu da Língua Portuguesa ainda está coberto por tapumes. Creio que as obras de restauro continuam. Sinto-me feliz por já tê-lo visitado e nostálgica por não poder revê-lo.

Chega a hora de voltar para a Sala São Paulo, onde já poderíamos nos sentar, tomar um café, descansar os pés, até que se iniciasse a apresentação. Na caminhada de volta, mais zumbis, em número cada vez maior, até que chegamos à concentração deles, habitantes vindos da cracolândia, que segundo um político famoso, supostamente não existiria mais. Mas ela existe, está ali, bem na Praça Júlio Prestes, ao lado do foco de nossa visita. Curiosos, nos aproximamos e somos recepcionados por alguém que nos pergunta: “O que vocês querem hoje?”. “Não queremos nada, obrigada”, respondo. Mentira, eu queria sim. Queria que a cracolândia não estivesse ali e em lugar nenhum do planeta.

Passadas as catracas, fomos ao café e enquanto eu degustava o meu, olhava para aquela parede lateral e não conseguia deixar de pensar que do outro lado, há poucos metros, estavam cachimbos portando pessoas.

Na última e mais prazerosa parte de nossa aventura, entramos olhando para tudo, para cima, para o lado, para aquela gigantesca casa de espetáculos, para as inúmeras luzes douradas que pediam fotos. Entram a maioria dos músicos. Aplausos. O primeiro violino e depois os demais. Finalmente o maestro. Começa uma deliciosa apresentação com a ópera II Guarany, de meu primo longínquo Carlos Gomes (minha mãe me contava que o ilustre compositor passeava pelas Campinas de mãos dadas com seu primo, uma criança, meu bisavô).

Após uma hora de apresentação o maestro informa que o “Bis” é a suíte de Edu Lobo, que já constava do programa. Talvez porque, infelizmente, eu não seja tão assídua a espetáculos de música clássica, eu não tenha entendido essa colocação. De qualquer forma, saímos satisfeitos com tudo o que vivemos naquela noite. Quero dizer, quase tudo.


                

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segunda-feira, 1 de abril de 2019

Fome e oração

Aconteceu com uma amiga. Mas a história é tão sensacional que vou contar como se tivesse sido comigo.
Eu estava na praia pegando um sol durante a semana. O frio já estava quase chegando e eu ainda não tinha conseguido fazer isso naquele ano. Matei o trabalho e peguei estrada rumo ao litoral. Chegando lá, molhei os pés, caminhei descalça pela areia, senti a brisa, contemplei o mar. Era tudo o que eu precisava. Os últimos tempos não estavam sendo nada fáceis. 
Senti fome. Tinha vontade de comer uma porção de peixe. Olhei o cardápio: R$55,00 a meia porção de tilápia, era o que tinha mais em conta. Dava para comprar uns três quilos, mas, eu não estava no mercado. Daí, resolvi pedir.
Demorou um pouco, mas, assim que chegou se aproximou de mim um garoto. Devia ter uns 10 ou 11 anos, no máximo. Disse que estava com fome. Se eu podia comprar algo para ele comer. Olhei pra meia porção e disse: “estou sozinha e posso dividir essa meia porção de peixe com você, apenas com uma condição”. 
Ele olhou ressabiado e fez com a cabeça como quem diz "qual?". 
“Tenho alguém doente na família e precisava rezar por ele. Você sabe rezar? Pode rezar comigo por essa pessoa? Um pai nosso e uma ave Maria antes e depois de comermos. Com fé", reforcei. 
Ele me fitou: “a senhora começa que eu acompanho”. Comecei a rezar e ele a repetir. Não parecia saber as orações de cor. Mas se esforçou para fazer a sua parte.
Descobri a porção e pedi que ele se servisse primeiro. "Coma com cuidado porque tem espinhos", avisei. Comemos em silêncio. Ao final da refeição, ele me encarou novamente pronto para cumprir a segunda parte da promessa. E assim foi. 
Quando terminamos, antes que ele se fosse, eu perguntei: "você não sabia rezar, não é”?
“Sou Testemunha de Jeová”, respondeu.
Meu estômago doeu. Eu perguntei: por que rezou, então? 
"Eu estava com fome", respondeu. "E também queria que o seu doente melhorasse". 
Disse isso e saiu correndo, me deixando sozinha com as minhas lágrimas.