terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A fome na corte

 

Na mesa, lagosta grelhada, arroz de polvo, bacalhau na brasa, vieiras ao molho de manteiga e limão siciliano, tudo isso regado à Sauvignon Blanc para harmonizar. Convidados, senadores, deputados, prefeitos, governadores, ministros, militares, empresários do agronegócio, das indústrias alimentícias, indivíduos das classes mais abastadas discutem a fome, enquanto se refestelam com o banquete.

“A fome existe no mundo todo. Um mal muito difícil de acabar. Por todos os lados estão esses indivíduos que se multiplicam sem pensar nas consequências... Uma irresponsabilidade, a meu ver”. Pausa para um gole de vinho e mais uma garfada da deliciosa carne do crustáceo.

“É verdade. Fazem os filhos e nós é que temos de nos virar para arrumar creches, escolas e merenda escolar para eles”, reclama um dos prefeitos.

“Concordo com os senhores. Em vez de procriar deveriam fazer algo mais útil para o país, trabalhar, fazer exercícios físicos, fechar a boca e manter a forma, não acham?”. Ao terminar sua fala saboreia de olhos fechados uma deliciosa vieira.

Antes de abocanhar um naco de bacalhau, o poderoso empresário opina: “Eu li que o brasileiro está se tornando cada vez mais obeso e passa a sobrecarregar ainda mais nosso sistema de saúde, há tempos já tão debilitado”.

“Senhores, não podemos nos esquecer de que a fome aumentou significativamente após o inicio da pandemia do coronavírus. Temos mais de 19 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar. Além disso, nosso país tem atualmente 14,8 milhões de desempregados. Sem renda, é natural que não tenham o que comer”, fala um deputado antes de mastigar um belo pedaço de lagosta.

“Difícil criar emprego para tanta gente!”, desabafa o ministro. “Ainda mais com a essa economia desgovernada, dólar subindo diariamente, ações em queda livre...”. Diz isso e dá uma garfada no arroz de polvo.

“Dar emprego como, se eles não têm estudo?”, indaga o empresário do ramo tecnológico, pousando a faca na mesa.

“Em minha recente visita a Dubai”, explica um político, “andei tendo umas ideias... e se nós fizéssemos algumas obras, grandes obras...” Enquanto sonha, sorve com satisfação o aromático vinho.

“Obras são muito demoradas. Temos de agir rapidamente, afinal, a eleição já está aí”, lembra um assessor, limpando a boca com o guardanapo.

Depois de quase se engasgar com a farofa, o deputado tem uma ideia: “Que tal acabarmos com o Bolsa Família? Esse programa está totalmente ultrapassado. Criamos outro, com um nome mais... nacionalista...tipo “Auxílio Brasil, que tal?”.

“Parece bom. Mas de quanto seria esse auxílio?”, pergunta um parlamentar aliado, lambendo os beiços.

“Pagaremos R$400,00 até o final do próximo ano”, afirma o idealizador da ideia, depois de uma golada de vinho.

Sem entender a lógica, o político ingênuo, que acaba de provar a salada, questiona:  “Mas só por um ano? E depois, o que acontece?”.

“Ora meu amigo”, exclama o aspirante a gênio, desistindo de levar mais uma garfada à boca.  “Depois da eleição pensamos. Primeiro é preciso ganhar, certo?”

“Verdade. Mas esse valor não está no orçamento”, lembra o ingênuo.

“Exatamente. Não está. Assim como algumas emendas prioritárias para nós. Vamos solicitar ao congresso uma autorização para furar o teto de gastos”, explica pacientemente o estrategista, antes de se servir de mais uma taça.

“Ah, mas isso não passa no congresso”, dispara outro ministro, enquanto se serve de mais uma porção de bacalhau.

Um gole. “Não passaria, mas é por isso que temos de incluir as emendas. Não existe nada mais convincente, não é?”.

“Em vez de aumentar o teto, não seria mais fácil promover um corte de gastos?”. A pergunta vem novamente do ingênuo, já tentando escolher uma sobremesa.

“Você está louco. Cortar onde?”, indaga irado o primeiro, que havia iniciado a conversa. Ele deixa de lado o talher e fita, incrédulo, seu interlocutor.

“Você está muito influenciado por esses comunistas. Que tal cortar o seu salário e te incluir na lista do Auxilio Brasil?”, dispara outro político centrista.

“Espera aí? Eu não posso ficar a pão e água”, responde o ingênuo quase se engasgando com seu Tiramisú.

“Senhores, acho que já estamos todos satisfeitos, não? Nossa conversa foi muito produtiva. Rendeu grandes ideias. Parabéns! Garçom, a conta e uma nota fiscal, por favor. Tenho de apresentá-la no portal da transparência. Aliás, todos concordam em dispensar o cafezinho? Nós também temos de dar o exemplo!”


#crônica #fome #orçamento #congresso #política 


sábado, 13 de novembro de 2021

"Ficções: a Arte de fingir"



A arte é uma representação da vida. Apesar de não ser a verdade em si, ela nos representa de alguma forma. Um livro que conta fatos, históricos ou um livro reportagem, embora possa ser elogiado pelo seu formato, não pode ser classificado como arte, não pode ser ficção, teoricamente, não deve estar fingindo. Obviamente há a questão da subjetividade, bem como as tão atuais “narrativas fake”, mas não nos cabe nesse momento enveredar por esse caminho. Afinal, a proposta do XIV Encontro de Escritores e Leitores é discutir o tema “Ficções: a Arte de fingir".

    Originária do Latim, a palavra “ficção”, vem de “fictione” e significa criação. Podemos, então, com base na realidade, imaginar uma narrativa literária que não é real. Também a palavra de origem latina, fingir, “fingere”, seria “modelar o barro” e passa a ser usada para significar simular, fantasiar, inventar, burlar de alguma forma a verdade. Na arte é mais como criar algo que se parece com a verdade, mas que não é a verdade. Dedos em Inglês são “fingers” e é com eles que escrevemos ou moldamos o que queremos fingir. Insistindo ainda na definição das palavras, não é a toa que “play” em Inglês traduza-se como “brincar”, “tocar” e até como “peça teatral”. “O artista é o adulto que não esqueceu como se brinca”, disse um filósofo francês.

    Além de passar para sua obra a sua bagagem, a sua vivência, o autor não necessariamente precisa se representar. Ele pode observar o outro e representá-lo em sua obra. Pode ainda usar em um texto, por exemplo, o pronome “eu”, mas estar representando o outro, bem como utilizar “ele” e estar falando de si. Essa análise deixa mais claro o significado de fingir na literatura e nas artes. Além disso, o autor pode estar colocando em sua criação o que vive, o que vê e também inventando algo. Como disse Ferreira Gullar, se a realidade não basta, a gente precisar criar algo que esteja fora da vida. Se a verdade é chata, não é tão interessante, nem tão engraçada, pode-se “arrumar” a história. Esse poder está na mão do artista que vai fazer alguém viajar na sua criação.

    Tal como na literatura, também na dança, no teatro, em toda criação, o artista precisa fazer uma imersão, entrar no personagem, fingir com toda a sua determinação e talento. Mas apesar do fingimento, tanto o escritor como o leitor, no caso da escrita, precisa acreditar no que está lendo. Trata-se da verossimilhança, um conceito que precisa ser seguido na arte. Ainda que seja uma fábula, uma fantasia, ela precisa ser crível. Assim como vivemos intensamente o que sonhamos, vivemos a arte que consumimos. É o que nos faz chorar com a morte de um personagem, torcer para que outro se dê mal ou esperar um final feliz.

    Ainda que saibamos que a arte é fingimento, muito nos alimentamos dela para nos tornar aquilo que somos. O fingir da arte pode tocar, pode contribuir, pode influenciar tanto quanto a realidade, mesmo sem podermos quantificar o alcance ou a intensidade dessa contribuição.

 

Dicas de leitura

Dom Casmurro – Machado de Assis

A Revolução dos Bichos - George Orwell

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley

Vidas Secas – Graciliano Ramos

Quarto do Despejo – Carolina Maria de Jesus

Poema Meditação XVII - John Donne

Obras de Júlio Verne

 

Dica de filmes

Pixote, a lei do mais fraco e Quem matou Pixote?

Blade Runner – dirigido por Ridley Scott

Desejo e Reparação – Dirigido por Joe Wright,

 

#literatura #arte #ficção 

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Eu não sou nada fã de Halloween

    Eu não sou nada  fã de Halloween.  A festa,  que  muitos acreditam  ter sido importada dos EUA, mas que é originária da  Irlanda,  passou  a  ser  mais comumente comemorada  no Brasil  há  algumas  décadas,  no  meu entender,   por  iniciativa  das escolas    de  Inglês.  A  criançada  logo  se animou  de  olho  nas  guloseimas  que  lhe são oferecidas  pra  evitar  as  “travessuras” e os adultos passaram a curtir as fantasias cujas  fotos  vão  rapidamente  para  as  redes  sociais e rendem inúmeras curtidas.

    Também não vou ficar aqui defendendo o Saci-Pererê, personagem do folclore brasileiro que se tornou uma espécie de contraponto à festa americana. Acho uma grande besteira ficar alimentando essas competições nacionalistas em plena era da globalização.

    Por que então eu comprei um saco de balas e fiquei à espera da visita das crianças fantasiadas do meu condomínio? É simples, porque não vejo nada demais na animação delas e acho divertido ver suas carinhas felizes, mesmo por trás das máscaras. Nem todos agem da mesma forma. Há aqueles que até reclamam a presença delas, se incomodando com o alvoroço que provocam. São pessoas amargas, que parecem não terem tido infância.

    Vivemos um Halloween todo dia, em que monstros de todo o tipo e tamanho nos assombram cada vez que ligamos a TV no noticiário, que ouvimos o rádio, que acessamos os jornais via internet ou em papel (como eu ainda faço de vez em quando), ou quando nos deparamos com as fake news pelas redes sociais. Pandemia, violência, racismo, homofobia, desemprego, fome, desgoverno, queimadas, destruição das florestas, poluição, agrotóxicos, mudanças climáticas, alta do dólar, inflação de dois dígitos e por aí vai. Coisas que nos assustam, que nos atingem e com as quais não podemos nem negociar. Não se troca essas maldades por doces.

    Como não me alegrar com essa criaturinha mascarada que veio bater à minha porta? Doces ou travessuras?

#halloween #crônicas #diaadia

domingo, 19 de setembro de 2021

O poema e a canção

    O que esperar de um encontro em que poetas, escritores, leitores e amantes de música discutem sobre poemas e canções? Muitos detalhes interessantes surgiram desse papo no XIII Encontro de Escritores e Leitores acontecido dia 17/09/2021 pelo Google Meet. Não deixe de checar as dicas que serão postadas ao final!

    Vale lembrar a origem da palavra poesia, “poíēsis”, do grego, que significa criação, obra poética. Falando de significados, costumeiramente ouvimos as pessoas usarem as palavras “poesia” e “poema” como sinônimos. Entretanto, enquanto poema é uma obra que usa palavras como matéria-prima, a poesia, além de ser um gênero de escrita, pode estar mais amplamente relacionada a outras criações, paisagens, fotografias, objetos etc.

    Algo parecido acontece com as palavras “música” e “canção”. A primeira sendo a arte de combinar os sons de maneira lógica e coerente, a canção sendo uma música com versos a serem cantados.

    No passado havia muitas manifestações artísticas em que a figura do poeta entoava canções de um jeito teatral, fazendo com que esses conceitos estivessem unificados. Em determinado momento há uma separação em que o poeta passa a ser aquele que escreve, mas não necessariamente declama ou canta. Os sonetos, por exemplo, que em italiano podem ser traduzidos como “uma pequena canção”, passaram a representar uma forma rígida, com dimensões métricas específicas para serem seguidas pelos poetas escritores. Quando se divorcia a poesia da música, o poeta passa a trabalhar no rigor da métrica.

    A partir dessa separação a poesia ganha ares acadêmicos, intelectuais, mas a canção popular fica rotulada como uma arte menor, algo extremante injusto. Quando novamente poesia e música se reaproximam é que a canção começa a recuperar o seu valor.

    Quando se faz música, normalmente se escreve uma letra para uma melodia, o contrário sendo mais raro. Será que toda letra de canção pode ser exibida como um poema? Será que todo poema pode ser transformado em canção? Não existe uma resposta definitiva para esse limite entre ser um e outro. O certo é que há vários poemas que se prestariam muito bem a compor uma bela música e que a letra de uma canção, separada de sua melodia, soaria muito bem quando apenas declamada.

    Muitos foram os exemplos trazidos para a roda. Tanto aqueles que transitam bem em ambos os lados, como aqueles que não se sustentam ora de uma lado, ora de outro.

    Será que a letra da belíssima canção de Jorge Bem Jor, W/Brasil(Chama o síndico), se sustentaria como poema?

“Alô,Alô!WoBrasil/Alô, Alô! W o Brasil/Jacarezinho!/Avião!/Jacarezinho!/Avião!/Cuidado com o disco voador/Tira essa escada daí/Essa escada é prá ficar/Aqui fora/Eu vou chamar o síndico/Tim Maia!/Tim Maia!/Tim Maia!/ Tim Maia!

    Já os poemas muito reflexivos, que dependem da forma em que são colocados no papel, da interpretação de quem lê, deixariam de lado esse recurso ao serem transformados em letra de música.

    Mas não podemos negar que existem letristas de músicas que são verdadeiros poetas. Noel Rosa, Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil são os mais lembrados. Da mesma forma existem poetas cujos poemas parecem pedir uma voz ou uma melodia. Dentre eles podemos citar Edgar Allan Poe, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Castro Alves, Gonçalves Dias. Além disso, existem também compositores de músicas inspiradas em poemas. Foi Tom Jobim que, lendo Guimarães Rosa e contemplando a água de um riacho correndo após uma chuva, compôs “Águas de Março”. Há poetas que viraram letristas, como, por exemplo, Torquato Neto, que após se aventurar na poesia, se entregou de vez para a música. Alice Ruiz é poeta, haicaista e grande letrista.

    Seja qual for o gênero - poesia ou música - seja qual for a obra - poema ou canção - que sempre toque fundo nosso coração!

#literatura #poesia #poemas #música #canção 










segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O ratos do palácio

 


                No Palácio do Arvorado:

                Tenho uma audiência com o presidente. Pode me anunciar, por favor?

                Ah, sim, senhor ministro, estávamos aguardando o senhor, porém, o presidente teve um pequeno imprevisto e pediu para o senhor aguardá-lo por alguns minutos.

                Huhum, imprevisto. Sei. Tá certo. Onde eu posso aguardar?

                ─ Por aqui, por favor.

                Sentado em um confortável sofá na sala de espera, o ministro da Guerra ocupa-se com um joguinho de batalha no celular. Dispara sem dó a metralhadora, TRRRRRRRRRRR TRRRRRRRRRRR, depois joga uma granada...BRUMMMMM. Tão distraído, não percebe o desfile de ratos por trás do móvel. Os animaizinhos têm os olhos fixos no visitante, como se o admirasse, e vão aos poucos fazendo um cerco em volta dele. A concentração de ambos se quebra com a chegada do capitão, que com sua voz estrondosa espanta os moradores indesejados e acena para o súdito que vem ao seu encontro.

                Que diabos, Mirele, ainda não acabaram com essa infestação de ratos, orra! Eu não consigo entenderrrr qual é a dificuldade de se acabarrr com esses minúsculos bichos. Taca veneno neles, caramba! Cloroquina, sei lá, qualquer coisa.  O que não pode é eles ficarem aqui, cercando os convidados. Merda!

                Há tempos o órgão responsável pela administração do patrimônio vem promovendo sucessivas desratizações, até o momento sem sucesso. Os invasores parecem se sentir muito à vontade no ambiente e se proliferam em uma velocidade muito maior do que a normal de modo que a cada animal exterminado, uma nova ninhada aparece.

                Um pouco sem jeito, o ministro Braguilha Neto pergunta: O que o senhor disse, capitão?

                Eu disse “merda”, orra!  Tá saindo aqui do meu buraco, kruhrhrhrhrhr , o buraco da espetada, aqui na minha barriga. Eu não sei mais o que fazerr, tá saindo muita merda pra todo o lado, todo o dia. Não estanca isso aqui, orra!

                Desde 2018, época em que sofreu um atentado a peixeira, o presidente já passou por inúmeras intervenções cirúrgicas para tentar fazer com que a ferida cicatrize e o fluxo intestinal se normalize. Entretanto, estranhamente, não conseguem fazê-lo por completo, a secção sempre volta a se abrir e o conteúdo fecal recomeça a transbordar sem controle.

                A essa altura o ministro imagina a situação e instantaneamente lhe vem às narinas um fedor de estrume, com um pouco de enxofre no meio. Faz uma careta, mas tenta mudar de assunto.

                O senhor vai querer o desfile de 7 de Setembro como, capitão? Muitos soldados, com fuzis, tanques, o que mais?

                É manda um monte de recrutas aí, todos fantasiados, quero dizer, uniformizados, forrrtemente arrrmados e com cara de macho, tá ok? Num quero nenhum florizinha, não. Ah, e quando for escolherrrr os tanques, vê se não traz aquelas carroças do outro dia, soltando aquele fumacê danado. Ceis tão querendo me desmorizarrr com aquilo, não tão? Manda coisa de primeira linha, capacete!

                Mas, capitão, infelizmente nós não temos tantos equipamentos em bom estado assim, né? As verbas disponíveis temos direcionado pra melhorar o soldo, os penduricalhos dos cabeças e garantir o apoio deles, né? O equipamento não dá suporte se não tiver o cabra lá, manejando ele, o senhor sabe.

                ─ Tá certo. Mas vê se não esquece de escalarrr a turma do cercadinho, heim? Eles não podem faltarrr.  Avisa que quem num tiver aqui na hora e vestindo a camisa do Brasil não vai receberrr.

                ─ Não tem perigo, chefe. Eles já estão fechados com o senhor e já sabem tudo o que têm que fazer e falar. Fique tranquilo. E o pessoal das redes sociais também, já começaram as postagens. Tudo pago e garantido.

                ─ Ah, outra coisa, chama aquele grandão, o cantor lá, fala que ele não pode recuar agora, não. Ele conseguiu a prótese que queria, não conseguiu? Agora não venha com essa conversinha de que tá deprimido e coisa e tal. Isso não é coisa de macho! Manda ele virá home, já que tá com o equipamento em dia, orra!

#crônicas #contos #7desetembro #independência


sábado, 17 de julho de 2021

Adaptações: quando a letra se traduz em imagem

 


    O que acontece quando a literatura é levada para o cinema? Normalmente o roteirista se propõe a fazer uma tradução da obra e não uma simples cópia dela. Mesmo porque são linguagens diferentes, com recursos próprios de cada delas. É basicamente transformar em imagem a palavra escrita, mas nada simples.

    É comum que leitores de um livro se decepcionem com a sua versão no cinema. Isso acontece porque o leitor em sua atividade solitária e silenciosa constrói em sua mente imagens de acordo com a sua percepção da história escrita. Ao assistir à adaptação do livro em filme nem sempre a imagem que verá na tela corresponderá fielmente àquela que ele criou. Além de serem diferentes, pode acontecer que sejam criadas cenas que não estão transcritas no livro, que sejam aumentados trechos que no papel eram apenas uma pequena menção e transformados em uma longa sequência de pura ação e emoção. O contrário também acontece, ou seja, várias páginas do livro serem filmadas de maneira rápida e superficial. Não é raro também a inserção na tela de novos personagens ou mudança de suas características.

    Compreensível que isso aconteça, pois nem sempre é fácil ou viável traduzir de forma fidedigna o conteúdo de um livro para o cinema. A literatura é repleta de descrições, de cenários, de personagens, em sua forma, em seu caráter, no sentimento, no humor etc. O cinema muito mais do que trabalhar com a palavra, trabalha com imagens, com movimento de câmeras, com enquadramento, perspectiva, luz, trilha sonora, entre outros. A câmera mostra o que a descrição conta.  

    Não é regra geral, mas ocorre de vez em quando de um filme agradar ao leitor, ou mesmo superar suas expectativas em relação à sua transposição. Há ainda quem se interesse em ler um livro, após assistir à sua versão em filme. Por esse motivo, o recurso pode muito bem ser utilizado para ajudar a quebrar a resistência de jovens estudantes para a atividade de leitura.

    Seja como for, o que importa mesmo é que a essência da criação seja mantida, ou que, no mínimo, grandes obras sejam criadas e possam ser apreciadas, seja por leitores ou expectadores.


Confira algumas dicas de filmes adaptados ou inspirados em livros, contos ou poemas:

O Grande Gatsby – filme de1974 – Com Robert Redford, Mia Farrow, Bruce Dern e Karen Black,  e de 2013 com Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire e Carey Mulligan)  - Romance de F. Scott Fitzgerald

Um Estranho no Ninho - filme de Milos Forman com Michael Berryman, Jack Nicholson, Louise Fletcher, William Redfield – Romance de Ken Kesey

O Curioso Caso de Benjamin Button – criado a partir de num conto de F. Scott Fitzgerald, que, por sua vez, foi inspirado numa citação de Mark Twain: "A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e gradualmente chegar aos 18"

A Vida Secreta de Walter Mitty – Filme dirigido e estrelado por Bem Stiller – Inspirado no conto de James Thurber

A Última Tentação de Cristo – de Martin Scorsese – Romance do escritor grego Níkos Kazantzákis

Uivo – poema Allen Ginsberg que virou filme – tem também versão em animação

O Vestido – filme inspirado no poema de Drummond Caso do Vestido

Os Meninos Que Enganavam Nazistas – filme de Christian Duguay – Livro de Josefh Joffo

O Morro dos Ventos Uivantes – filme baseado no romance de Emily Brontë

Vidas Secas – filme baseado no livro de Graciliano Ramos

O Senhor dos Anéis – filme baseado no livro de J. R. R. Tolkien

Harry Potter – série de filmes baseados na séria de livros de J. K. Rowling

O Conde de Monte Cristo – adaptação do romance de Alexandre Dumas

Os Miseráveis- filme baseado no romance de Victor Hugo

Laranja Mecânica – filme baseado no romance de Anthony Burgess


#literatura #cinema #livro #romance #poesia #adaptações #dicasdelivros #dicasdefilmes

Obs.: Texto criado com base nas discussões do XII Encontro de Escritores e Leitores - 16/07/2021.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Parasita

    Assisti ao filme “Parasita” ontem, pela Tela Quente da Rede Globo. Mesmo tendo sido o filme de língua estrangeira premiado pelo Oscar no ano passado e, além disso, ter sido vitorioso em mais de 300 premiações do gênero, ainda não tinha tido a oportunidade de conferi-lo.

    Embora com um pouco de atraso, afinal nem tão grave por eu não ser uma especialista da área, senti necessidade de escrever algo sobre ele. Pelo que li em uma breve pesquisa pela internet, muitos foram os que se manifestaram a respeito. Acho que o filme é isso, uma história muito criativa e cheia de mensagens, ao ponto de fazer com que o expectador tenha necessidade de refletir e falar sobre ele.

    É claro que nem todos gostaram, nem todos falaram bem. Li muitas críticas favoráveis, enaltecendo o diretor, atores, o filme todo em si, bem como li ataques ferozes ao mesmo diretor, aos mesmos atores, à história e até aos jurados do Oscar. Foram muitos que odiaram o filme, que viram nele um péssimo exemplo para a sociedade.

    Entretanto, eu acho que as pessoas precisam entender que um filme conta uma história, que não necessariamente tem que servir de exemplo para quem assiste, algo a ser copiado, práticas da vida real a serem perdoadas ou justificadas. Ele pode também, a partir de uma situação extrema, exagerada, nos fazer pensar nos detalhes da vida real, nos sentimentos ocultos, nas frustrações desveladas, nos preconceitos, na sujeira que vai para debaixo do tapete.

    O que mais me remeteu à nossa realidade foi a relativização do certo e do errado. Afinal, quantas pessoas conhecidas ou não, públicas ou não, maqueiam seus currículos, usam o sinal de internet do vizinho, fazem gatos e por aí vai...? Quantas sonegam impostos, empresas ou pessoas físicas, porque dizem ser impraticável arcar com todos eles, sem ter a contrapartida esperada.  Quantos empregados da vida real são submetidos aos desejos de seus patrões e são obrigados a abrir mão de seus dias de folga para trabalhar, recebendo horas extras é claro, ou não? Quantos pessoas são distinguidas pelo “cheiro de quem pega transporte público”? Onde estariam os parasitas do filme?

    Para quem ainda não assistiu, apenas para dar mais uma dica de quanto o filme surpreende, peço atenção para a importância da arquitetura da casa. Ela quase que se torna uma personagem da história, tamanho o seu simbolismo.

    Por fim, destaco mesmo o desfecho, a decisão final tomada por um dos personagens. Quais seriam as chances de o último plano traçado chegar ao seu final com sucesso? Mas se elas são pequenas, o que se justificaria não seria a trajetória tomada e não propriamente o seu resultado?

    Eu não tenho o objetivo de trazer respostas a esses questionamentos. Faço essas observações para que apenas cada um de nós reflita, sempre, no seu dia a dia, a cada ação planejada, a cada decisão tomada, a cada passo dado em nossa caminhada nesta vida, se eles são, realmente, coerentes com nossos valores e com o que esperamos das outras pessoas.

#filme #crítica #parasita #críticasocial

quinta-feira, 27 de maio de 2021

País sem salvação?

           “Vocês não têm salvação. É muita cachaça e nada de oração”. A frase, dita em tom de brincadeira pelo Papa Francisco a um padre brasileiro que lhe pediu oração, repercutiu nas redes, recebendo muitas críticas e também certo volume de apoio.

            Antes de ser papa, Francisco é um ser humano, passível de erros. Sua origem argentina também o credencia para zoar do povo brasileiro, prática comum a ambos os lados de países que rivalizam em vários aspectos, sendo o futebol um dos principais. Era pra ser uma frase engraçada, uma piada, de mau gosto talvez, mas uma piada. A questão é que quando sai da boca do chefe supremo da Igreja Católica, diante das atentas lentes do mundo todo, ganha uma proporção de grandeza exponencial. Afinal, Jesus Cristo, pedra fundamental da religião, sempre pregou que a salvação está ao alcance de todos, desde que se arrependam verdadeiramente de seus pecados. Inúmeros trechos do Evangelho confirmam esse ensinamento, com partes que evidenciam o encontro do filho de Deus com cobradores de impostos e prostitutas, estes considerados os maiores pecadores da época. Há instantes de sua morte, crucificado, Jesus ainda teria dito a um dos ladrões que estavam ao seu lado que entraria com ele no Paraíso.

            A partir de uma breve passada de olhos por comentários surgidos depois da divulgação desse fato nas redes sociais, pode-se constatar um pouco de tudo. Há os que não desperdiçaram a oportunidade para traduzir as palavras do pontífice como uma alusão aos supostos hábitos etílicos de um ex-presidente em contrapartida às palavras bíblicas repetidas constantemente pelo atual líder do país. Foi um prato cheio para os cegos da atualidade, que enxergam de forma multiplamente distorcida, na figura dos dois, a dualidade entre o Bem e o Mal. Tanto de um lado como de outro se lê insanidades. Houve também quem simplesmente concordasse com o Santo Padre, levando muito a sério sua constatação.

            Otimista de carteirinha, acredito que assim como a maioria das pessoas no mundo, seja sob qual for o ângulo de análise, os brasileiros vivem um processo de aprendizado. Estamos aprendendo a duras penas, o custo de apostar nossas fichas, no caso nosso voto mesmo, em figuras milagreiras. Mitos salvadores da pátria, que segundo o papa nem tem salvação. Mas como eu já disse, minha opinião é a de que tem sim. Ela virá com o tempo, na medida em que o povo comece a entender que não se trata apenas de colocar alguém no poder e deixá-lo lá com um cheque em branco, ou pra usar algo mais atual, com um cartão de crédito coorporativo ilimitado.

            Além de usar critérios adequados para a escolha de seus representantes, bem diferentes daqueles que se usa para escolher um time para torcer, que se faça uso das ferramentas de controle existentes de acordo com as leis que regem nosso país. Que exijamos nossos direitos, que deixemos claros nossos anseios e nossas necessidades e que os cobremos constantemente para que haja rígida prestação de contas.

            Façamos uma caipirinha com nossa cachaça para que possamos brindar com ela um futuro de sucesso para nosso amado país, quem sabe até para nossos “hermanos” e para o mundo todo.

#crônicas #papafrancisco #Brasil #política            

sábado, 15 de maio de 2021

"Cortes, acréscimos... a importância da edição"



    Muitas vezes é difícil para um autor cortar ou modificar trechos de sua obra, seja ela em prosa ou poesia. Sabemos que essa providência quase sempre é necessária, mas raramente encontram-se editores capacitados ou propensos a fazer esse papel, como o que no filme “O mestre dos Gênios”, o personagem da década de 20, Max Perkins, executa brilhantemente. Infelizmente, na maioria das vezes, sugestões são dadas apenas com interesses mercadológicos e não exatamente para melhorar a criação. Desta forma, o próprio autor precisa aprender a editar sua escrita. Precisa saber cortar, saber corrigir, saber ordenar, saber acrescentar e além de tudo saber quando parar.

    Algumas modalidades artísticas tratam a edição com mais naturalidade. O cinema parte da gravação de um extenso número de cenas para chegar a um produto final de exibição de alguns minutos, ou de no máximo uma a duas horas. Na pintura, há vários artistas que recriam telas ou ocultam imagens que não os agradaram através de técnicas de sobreposição. Sabe-se, por exemplo, que sob a Mona Lisa, há outro quadro, certamente não aprovado por Leonardo da Vinci. Vincent van Gogh também deixou em suas cartas ao irmão afirmações de que havia repintado determinadas telas, cujo resultado desejado não havia sido alcançado logo de início. Na música, um caso de edição pode ser visto com John Lennon, que compôs primeiramente a canção “Child Of Nature” e depois, com a mesma melodia, gravou “Jealous Guy”, de letra completamente diferente da primeira. Quem conhece Bob Dylan sabe que ele altera suas letras a cada show, quase que impedindo os fãs de acompanhá-lo em suas canções.

    O poeta romântico Walt Whitman lançou em 1855 um livro chamado “Folhas da Relva” com doze poemas. Reeditou esse livro nove vezes até que em 1892, a nona edição tinha mais de 400 poemas, que provavelmente foram sendo acrescidos em função de seus conceitos similares. Também é possível notar pequenas alterações em versos das primeiras peças. Existem histórias que dizem que Drummond chegava a reescrever o mesmo poema umas setenta vezes.

    Podemos pensar que enquanto o autor está vivo, sua obra está aberta e que, portanto, está sujeita a modificações. Mesmo depois que ele se vai, dependendo de seus familiares ou de quem detenha os direitos de seu espolio, ainda poderão acontecer edições em obras já publicadas ou inéditas, como acontecem nas coletâneas póstumas, por exemplo.

    Além do próprio conteúdo da prosa ou verso, como já dito, faz parte também do processo de edição a seleção dos poemas que irão compor uma publicação, a ordem de disposição desses poemas no livro, no caso de prosa a ordem dos capítulos, a capa, as ilustrações, a diagramação, a encadernação etc. Atualmente há autores que gostam de se dedicar ao trabalho por completo, participando de todas essas etapas. Outros, porém, a partir de sua obra considerada pronta, delegam a execução dessas outras etapas a profissionais da edição.

    Já quando se trata de livro reportagem é trabalho do jornalista editar todo o conteúdo de suas entrevistas e suas pesquisas a respeito do tema escolhido, para decidir o que irá compor seu trabalho, de que forma e em que sequência, com o cuidado de manter as falas do entrevistado, de evitar repetições e de completar a história que quer contar. Além disso, quando o profissional se aventura no jornalismo literário, nas crônicas e mesmo na ficção, normalmente se deparará com o dilema de seguir ou não seu superego, de ser ou não ser criativo, de se permitir ultrapassar os limites das regras da escrita jornalística formal.

    Finalizo com a primorosa definição de César Magalhães Borges, que se diz orgulhoso de ser um escritor amador, por fazer aquilo que ama e por amar tudo o que faz.

Obs.: Reflexões resultadas do nosso XI Encontro de Escritores e Leitores, evento virtual realizado em 15/05/2021, pelo Google Meet.

#literatura #arte #autor #escrita #poesia #música #cinema

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Dia de lutar contra a mentira

 

    Para ¨comemorar” o dia de hoje, convencionado como o “Dia da Mentira”, sugiro assistir ao filme “The invention of Lying” ou título em português, O primeiro mentiroso. É uma comédia protagonizada por Richy Gervais que nos apresenta um mundo nos moldes do atual, com, porém, uma grande diferença: nele ninguém aprendeu a mentir. Ao descobri-la e passar a usá-la, ele conquista fama e fortuna, além de se aproximar da mulher dos seus sonhos.

    Tenho de admitir que, na minha opinião, não se trata de um grande filme, é até meio bobo, mas talvez por isso mesmo encaixe-se no rol das comédias românticas, que costumeiramente nos trazem momentos de relaxamento e diversão descontraída.

    Sugestão feita, gostaria de lembrar que em nosso mundo real a mentira existe e vem sendo usada a todo vapor, de todas as formas possíveis e inimagináveis, a serviço de causas sérias demais para serem comparadas a um filme. Infelizmente, uma parte das pessoas ainda não se deu conta de que as FakeNews estão por aí e não imagina o impacto que elas vêm impondo ao destino do Brasil e do mundo.  

    Não se trata das mentirinhas bobas e aparentemente inofensivas, às vezes tidas até como aceitáveis, como, por exemplo, quando dizemos a uma amiga que o vestido ficou bem nela ou que o corte de cabelo do marido ficou bom, só que não, ou às crianças que Papai Noel e o Coelho da Páscoa existem.

    Há mentiras muito mais perigosas, que funcionam como arma, que quando desferidas e multiplicadas, podem ferir e até matar. Existem também aquelas meias-verdades ou aquelas verdades distorcidas, que contadas como verdades inteiras, fazem um belo estrago.

    O mundo inteiro está atravessando há mais de um ano uma crise sem precedentes, os ataques de um vírus mortal e traiçoeiro, até pouco tempo desconhecido, e capaz de matar, sem distinção de raça, gênero, idade, classe social ou nacionalidade. Para enfrentá-lo de forma mais efetiva seria necessário agir em conjunto, unir forças no mundo inteiro, para tentar exterminá-lo do planeta, ou na impossibilidade, controlá-lo para que não extermine tantos em tão pouco tempo.

    Mas como os discursos não são homogênios, na verdade na maioria das vezes são opostos, quem tem a verdade?

    Se a terra estivesse sendo ameaçada por um vulcão em processo de erupção, teríamos de buscar a verdade consultando geólogos, se estivesse no caminho de um meteorito gigante, teríamos de ouvir os astrônomos, se estivesse ameaçada por um ataque alienígena, teríamos de contar com os exércitos e os serviços de inteligência e segurança mundial. Estando sofrendo com o advento de uma doença, quem são os profissionais que merecem crédito?

    A resposta é tão simples, quanto inegável. É claro que são os médicos, enfermeiros, profissionais da saúde, cientistas especializados em pesquisas no campo de doenças virais que têm condições de passar o maior número de informações e instruções coerentes com toda a bagagem e experiência que têm. Veículos da imprensa que trazem fatos reais, extraídos de fontes oficiais, checados e rechecados, com transmissões ao vivo e fotos certificadas, deveriam ser também levados em consideração.

    Em vez disso, alguns ainda preferem dar ouvidos a mensagens em redes sociais como Whatsapp, Facebook e outras, que são ferramentas de disparo e proliferação instantâneos, que nos últimos tempos vêm sendo utilizadas para a propagação de palavras, frases, imagens, vídeos, todos esses conteúdos manipulados de forma a contrariar e confundir a cabeça das pessoas. Isso as faz duvidarem das fontes reais e assimilarem como verdade o que está sendo produzido por interesses políticos ou pessoais, de mentes doentias que se utilizam dessas “armas” para alcançar cada vez mais luz e relevância.

    Que tal nós assumirmos o roteiro desse filme chamado “Vida Real” e passarmos a olhar com outros olhos para a Mentira do nosso dia a dia? Ouçamos os profissionais da saúde e da ciência:

    EVITAR, A TODO CUSTO, AS AGLOMERAÇÕES, USAR MÁSCARA, ALGOOL GEL, ESTENDER A MÃO (NO SENTIDO FIGURADO) A QUEM PRECISA E TORCER OU REZAR PELA VITÓRIA DA CIÊNCIA CONTRA O VIRUS E CONTRA A MENTIRA.

#primeirodeabril #diadamentira #fakenews #covid19 #crônicas #literatura

segunda-feira, 22 de março de 2021

A presença, a ausência e a ocultação do autor em sua obra

 

    Mesmo quando o autor escreve em primeira pessoa não está, necessariamente, escrevendo sobre si. Da mesma forma, quando usa a terceira pessoa, pode estar descrevendo suas experiências de vida projetadas em um terceiro. O mesmo acontece na poesia, com o “eu lírico”.

    Há autores que se fazem constantemente presentes em suas obras de tal forma que se fazem reconhecidos ainda que não sejam personagens da história. É possível reconhecer Woody Allen em seus filmes, inclusive naqueles em que ele não atua, apenas dirige. Há quadros em que os pintores se retratam ou se colocam dentro da sua criação. Por exemplo, no quadro “As meninas”, de Velasquez, o pintor se inclui em um canto da cena, pintando seu próprio quadro.

    Já outros não se identificam com tanta facilidade, porém, as próprias escolhas do que escrever e de como escrever trazem a sua marca. Não se encontra Jorge Amado em suas obras, mas se reconhece o escritor na forma humana com que ele trata os meninos em Capitães da Areia, por exemplo, que em outras narrativas poderiam ser retratados como delinquentes. Chico Buarque também não está inserido diretamente em suas composições, mas está visível nos temas de suas músicas, quando fala sobre futebol, sobre comida de boteco, sobre samba ou quando retrata os filhos e sobrinhos brincando.

    Quanto tentamos fazer uma crítica psicológica de uma obra, podemos cometer enganos, pois, nem tudo o que se escreve vem necessariamente do íntimo do escritor. Quanto tentamos fazer uma crítica social, também podemos nos enganar, pois nem sempre há um posicionamento político ou ideológico em uma criação. Pode ser apenas uma invenção, uma construção de algo que talvez não esteja no mundo do autor. Às vezes há um esforço de análise para caber em uma tese que é de quem analisa e não do analisado. Todas esses olhares juntos, incluindo-se a crítica genética, que busca conhecer a trajetória do autor até chegar à conclusão da obra, que analisa seu processo de criação, através da análise de cartas trocadas entre autores, anotações, alterações em rascunhos, talvez possam, aí sim, chegar a uma conclusão mais próxima do real.

    Finalizando, assinar a autoria, seria uma coisa burguesa, da arte mercantil, da arte transformada em comércio? Seria vaidade ocidental, individualismo? Na verdade pode ser apenas o exercício do direito a singularidade de cada ser humano, da forma com que trata suas impressões pessoais a partir de experiências coletivas. Seria, portanto, justo que ele assinasse o que construiu. Da mesma forma não são as invenções patenteadas pelos cientistas?

Obs.: Reflexões resultadas do nosso X Encontro de Escritores e Leitores, evento virtual realizado em 20/03/2021, pelo Google Meet.

#literatura #arte #autor #escrita #poesia #música #cinema


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Carnaval - é ou não é?

    


    Hoje é carnaval. Mas também não é. Uma contradição causada por um vírus cruel, que vem nos atormentado há mais de um ano e que nos condenou à ausência de muitas coisas, dentre elas a comemoração dessa festa maravilhosa.

    Sim, para mim o Carnaval sempre foi uma festa grandiosa e imperdível.  Quando criança, minha mãe me levava às matinês de salão e também para acompanhar os singelos desfiles de Rua de Campinas (sem querer ofender minha cidade, mas em comparação aos do Rio de Janeiro, por exemplo). A partir de meus dezessete anos, comecei a frequentar os bailes noturnos, que aconteciam em diversos clubes como Bonfim, Cultura, Regatas, Guarani. Embora eu tenha sido sempre torcedora da Ponte Preta, me via por vezes cantalorando o hino do clube rival, cantado à exaustão nos intervalos de cada baile que acontecia no ginásio localizado na Avenida Princesa D’Oeste. Nos primeiros anos da faculdade, eu cheguei a recusar convite para passar os quatro dias de folia na praia, para não perder tais bailes. Mas o meu sonho maior era sair em uma escola de samba. Consegui concretizá-lo em 1998, na Vila Izabel. Uma experiência mágica, que ficou na minha memória para sempre.

    Eu podia ficar contando aqui muitos detalhes dessa aventura e de como ela se tornou possível, mas o verdadeiro motivo para essa crônica é outro. Acabo de visitar o canal A Liter Ação, do amigo Roman Lopes, e comecei a responder no espaço reservado aos comentários, ao seu vídeo postado no YouTube “Carnaval é ou não é arte?”. O “comentário” começou a ficar grande demais tanto para o site como para o grupo de WhatsApp do qual ambos somos membros e onde acabaram surgindo também discussões sobre o tema.

    Concordo plenamente com todas as suas considerações a respeito, quando ele diz que o Carnaval é uma autêntica manifestação de arte, com enredos que provocam reflexão, que engloba uma série de categorias, como música, dança, escultura, pintura, a despeito de seu caráter mercadológico e às vezes alienante, que sempre recebeu críticas de variados grupos de pessoas.

    Já vi e ouvi algumas defendendo que o carnaval não deveria existir, que é dinheiro jogado fora, que é uma festa que desvirtua as pessoas, que as leva a cometer obscenidades, a beber em excesso, usar drogas, fazer sexo livre etc. Como o próprio Roman menciona, existem outras manifestações de arte que passaram a ser objeto de exploração mercantil, ou que contém excessos de variadas condutas, mas que porém não sofrem tanto preconceito como o Carnaval. Ele citou o Rock In Rio, como exemplo. Grandes espetáculos, de vários gêneros, desde óperas, peças teatrais, espetáculos de dança, exposições e tantos outros, também têm seus desvios de finalidade.

    Para mim, além de ser uma festa que transborda alegria e energia, que extravaza criatividade cultural e dedicação espontânea, também é um importante atrativo turístico, que fatura, emprega, faz girar de modo relevante a economia do país.

    Roman fala em seu vídeo sobre as diferenças entre os carnavais de Rio de Janeiro e São Paulo. Confesso que no passado já fui preconceituosa em relação a São Paulo. Sempre pensei que era uma festa que pertencia aos cariocas e que acabava sendo copiada pelos paulistas. Achava que São Paulo deveria investir mais em Parques, Teatros, Cinemas, Feiras, Convenções, Competições Esportivas (Futebol e Fórmula 1, especialmente), Restaurantes, Gastronomia em geral, que no meu entender eram mais a sua “praia”. Mas com o tempo e com a ajuda das transmissões televisivas, passei a deixar esse sentimento de lado e a valorizar a capacidade da cidade de reinventar a festa, justamente com suas características próprias.

    Algo que faltou comentar foi a existência também dos blocos de rua, presentes no passado e que tiveram sua força renovada nos últimos tempos nas duas cidades mencionadas, além de se manter firmes em muitas cidades do interior paulista e em outros estados, como Minas Gerais, por exemplo. São para mim uma versão daqueles de salão que como comentei, me davam muito prazer em frequentar. Sou também verdadeiramente apaixonada por marchinhas de carnaval, especialmente as mais antigas.

    Lembro ainda o Carnaval Baiano, do qual sinceramente não sou fã e que considero algo bem diferente do que tratamos até agora. É outro tipo de festa que predomina no Nordeste, pelo qual, se não manifesto apreciação, guardo grande respeito pelo amor de seus componentes, pelo número de participantes que alcança a cada ano e pelo também apelo turístico e empregador que representa, além de considerá-lo certamente uma efervescente manifestação cultural.

    Em relação à dúvida que originou a matéria impulsionadora da discussão, um Editorial da Revista SP Arte (365, de 11/02), sobre a ausência de arte carnavalesca nos museus do Brasil, entendo que muito deveria ser explorada. Sei que existem algumas exposições pelo país com o tema Carnaval, sobretudo no Rio e em Salvador, mas sem dúvida, haveria espaço de sobra para a cobertura do tema. Sempre me corta o coração quando circulo pela cidade de São Paulo nos dias que sucedem os de carnaval e me deparo com as grandes esculturas dos desfiles se deteriorando ao sol e à chuva. Ao menos, em caráter temporário, isso caracteriza uma exposição ao ar livre, pós-festa. Além dessas, que são extintas, sei que as escolas reciclam materiais, fantasias e até obras completas e isso talvez explique porque a maioria não vai para museus permanentes. De qualquer forma, seriam, sem dúvida, grandes e valorosas exposições.

    Feliz Carnaval virtual e sem aglomeração, por favor!

 

#Carnaval, #folia, #festa, #marchinhas, #fantasias, #escolas de samba

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Compete à arte competir?

  


    Em nosso IX Encontro de Escritores e Leitores, para compor o tema foram lembradas grandes rivalidades entre artistas famosos como Oswald de Andrade e Mário de Andrade, Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald, William Shakespeare e Christopher Marlowe, John Lennon e Paul McCartney, Eça de Queiroz e Machado de Assis, Vladimir Nabokov e Fiódor Dostoiévski, Ferreira Gullar e Augusto de Campos, Emilinha Borba e Marlene, Belchior e Caetano Veloso, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Muitas dessas competições foram fontes de inspiração para seus componentes, os fizeram criar mais e melhor, algumas delas acabaram com a amizade entre as partes, mas outras foram acompanhadas de cooperação mútua entre elas.

    Tendo a competição como regra básica, foram lembradas as Rengas do Japão antigo, formadas por desafios que originaram os haicais, os grandes embates dos repentes e as mais recentes batalhas dos Slams. Essas últimas, protagonizadas pela maioria de jovens, embora estimulem a criação, podem estabelecer a prevalência de um estilo mais vencedor, que acaba por impor uma espécie de molde às criações, o que seria o ponto negativo, além de, em alguns casos, acabar provocando depressão e tristeza entre os participantes não contemplados.

    A procura pelo sucesso nas redes sociais, a busca pelos likes e um grande número de seguidores, pode desvirtuar o caráter da arte, sua espontaneidade e sua beleza, mas é avaliada como um tanto inevitável para alguns, na busca pela visibilidade.

    Especialmente para o escritor, ser o ganhador de um prêmio de literatura pode trazer notoriedade à sua arte, principalmente porque a maioria sempre precisa de algum tipo de reconhecimento para reforçar sua própria crença em seu valor. Mas não ganhar, não significa necessariamente que sua obra não é boa. Isso porque muitos são os fatores que impedem que se faça uma avaliação completa das publicações, tanto pelo grande número de inscritos em relação ao de jurados, quanto pela competição entre gêneros distintos e até pela subjetividade nas escolhas.

    Seja como for, a conclusão é de que a competição e a rivalidade entre autores e artistas tem seu lado positivo, desde que não se transforme em um “vale-tudo”. Alem do que, talvez, nossa maior competição seja mesmo com nosso próprio Ego.

*Encontro realizado via Google Meet, em 20/01/2021.

#literatura, #arte, #prêmios, #livros, #poesias, #música, #teatro