Na mesa, lagosta
grelhada, arroz de polvo, bacalhau na brasa, vieiras ao molho de manteiga e
limão siciliano, tudo isso regado à Sauvignon Blanc para harmonizar.
Convidados, senadores, deputados, prefeitos, governadores, ministros,
militares, empresários do agronegócio, das indústrias alimentícias, indivíduos
das classes mais abastadas discutem a fome, enquanto se refestelam com o
banquete.
“A fome existe no mundo
todo. Um mal muito difícil de acabar. Por todos os lados estão esses indivíduos
que se multiplicam sem pensar nas consequências... Uma irresponsabilidade, a
meu ver”. Pausa para um gole de vinho e mais uma garfada da deliciosa carne do
crustáceo.
“É verdade. Fazem os
filhos e nós é que temos de nos virar para arrumar creches, escolas e merenda
escolar para eles”, reclama um dos prefeitos.
“Concordo com os senhores.
Em vez de procriar deveriam fazer algo mais útil para o país, trabalhar, fazer
exercícios físicos, fechar a boca e manter a forma, não acham?”. Ao terminar
sua fala saboreia de olhos fechados uma deliciosa vieira.
Antes de abocanhar um
naco de bacalhau, o poderoso empresário opina: “Eu li que o brasileiro está se
tornando cada vez mais obeso e passa a sobrecarregar ainda mais nosso sistema
de saúde, há tempos já tão debilitado”.
“Senhores, não podemos
nos esquecer de que a fome aumentou significativamente após o inicio da
pandemia do coronavírus. Temos mais de 19 milhões de brasileiros em situação de
insegurança alimentar. Além disso, nosso país tem atualmente 14,8 milhões de
desempregados. Sem renda, é natural que não tenham o que comer”, fala um
deputado antes de mastigar um belo pedaço de lagosta.
“Difícil criar emprego
para tanta gente!”, desabafa o ministro. “Ainda mais com a essa economia
desgovernada, dólar subindo diariamente, ações em queda livre...”. Diz isso e
dá uma garfada no arroz de polvo.
“Dar emprego como, se
eles não têm estudo?”, indaga o empresário do ramo tecnológico, pousando a faca
na mesa.
“Em minha recente
visita a Dubai”, explica um político, “andei tendo umas ideias... e se nós
fizéssemos algumas obras, grandes obras...” Enquanto sonha, sorve com
satisfação o aromático vinho.
“Obras são muito
demoradas. Temos de agir rapidamente, afinal, a eleição já está aí”, lembra um
assessor, limpando a boca com o guardanapo.
Depois de quase se
engasgar com a farofa, o deputado tem uma ideia: “Que tal acabarmos com o Bolsa
Família? Esse programa está totalmente ultrapassado. Criamos outro, com um nome
mais... nacionalista...tipo “Auxílio Brasil, que tal?”.
“Parece bom. Mas de
quanto seria esse auxílio?”, pergunta um parlamentar aliado, lambendo os
beiços.
“Pagaremos R$400,00 até
o final do próximo ano”, afirma o idealizador da ideia, depois de uma golada de
vinho.
Sem entender a lógica,
o político ingênuo, que acaba de provar a salada, questiona: “Mas só por um ano? E depois, o que
acontece?”.
“Ora meu amigo”,
exclama o aspirante a gênio, desistindo de levar mais uma garfada à boca. “Depois da eleição pensamos. Primeiro é
preciso ganhar, certo?”
“Verdade. Mas esse
valor não está no orçamento”, lembra o ingênuo.
“Exatamente. Não está.
Assim como algumas emendas prioritárias para nós. Vamos solicitar ao congresso
uma autorização para furar o teto de gastos”, explica pacientemente o
estrategista, antes de se servir de mais uma taça.
“Ah, mas isso não passa
no congresso”, dispara outro ministro, enquanto se serve de mais uma porção de
bacalhau.
Um gole. “Não passaria,
mas é por isso que temos de incluir as emendas. Não existe nada mais
convincente, não é?”.
“Em vez de aumentar o
teto, não seria mais fácil promover um corte de gastos?”. A pergunta vem
novamente do ingênuo, já tentando escolher uma sobremesa.
“Você está louco.
Cortar onde?”, indaga irado o primeiro, que havia iniciado a conversa. Ele deixa
de lado o talher e fita, incrédulo, seu interlocutor.
“Você está muito
influenciado por esses comunistas. Que tal cortar o seu salário e te incluir na
lista do Auxilio Brasil?”, dispara outro político centrista.
“Espera aí? Eu não
posso ficar a pão e água”, responde o ingênuo quase se engasgando com seu
Tiramisú.
“Senhores, acho que já
estamos todos satisfeitos, não? Nossa conversa foi muito produtiva. Rendeu
grandes ideias. Parabéns! Garçom, a conta e uma nota fiscal, por favor. Tenho
de apresentá-la no portal da transparência. Aliás, todos concordam em dispensar
o cafezinho? Nós também temos de dar o exemplo!”
#crônica #fome #orçamento #congresso #política
Nenhum comentário:
Postar um comentário