sábado, 20 de abril de 2024

Direitos Autorais e Domínio Público: quando a vontade do autor já não conta mais








    Quando, em janeiro deste ano, toda a obra de Graciliano Ramos caiu em domínio público, imediatamente foi anunciada a publicação de um livro inédito seu, “Os filhos da Coruja”. Trata-se de um poema, manuscrito pelo autor, com pseudônimo de J. Calisto. Pela vontade dele e pela disposição de seus herdeiros, isso jamais aconteceria, pois, o autor de Vidas Secas tinha deixado instruções explícitas para que escritos nessas condições não fossem editados após sua morte.

    Depois que um autor morre, os direitos autorais sobre suas obras passam para seus herdeiros num prazo de 70 anos. Após esse período, de acordo com a legislação brasileira, todo seu acervo cai em “Domínio Público”. Isso significa que a partir daí qualquer pessoa ou empresa pode se utilizar de parte de suas criações ou da totalidade delas para fazer o que quiser, republicar, transformar a escrita para teatro ou audiovisual, tomar como base ou fonte de inspiração para novas criações etc. Há uma grande liberdade a partir daí para se utilizar todo material que estiver disponível da forma que convier a cada um.

    Há todo um projeto em curso, liderado pela Companhia das Letras, com um pesquisador convidado a prospectar obras inéditas de Graciliano Ramos, morto em 1953, que possam ser publicadas, desconsiderando a vontade do escritor, levando-se em conta apenas o grande interesse público pelos escritos de um dos maiores autores da literatura brasileira.

    A lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1988, que regula os direitos autorais no Brasil, protege os direitos dos autores de obras literárias, artísticas e científicas. Ela assegura a eles o direito de controlar a forma como suas obras são usadas ou divulgadas. Também garante o direito de receber uma compensação pelo uso de seu trabalho.

    Ainda em vida, qualquer escritor que ceda os direitos de uma obra para uma editora, deverá fazer isso através de um contrato com prazo determinado ou definitivo, parcial ou total. Pode, por exemplo, ser de 3 ou de 5 anos. Nesse caso, depois disso, os direitos retornam para o autor, se for essa a sua vontade.

    A tendência inicial de um autor é de que ele queira ter direito total sobre sua criação, que tenha o domínio sobre suas obras, que possa fazer com que chegue a seu público da forma que quiser, sendo remunerado por isso ou não, de acordo com sua expressa vontade. Esse direito já começa a ser exercido logo que ele opta por determinada linguagem ou gênero, seja ela escrita, encenada, filmada etc.

    Há muitos que já escrevem um livro imaginando sua obra sendo transformada em filme ou série. No caso dos poetas, imaginam um poema seu sendo musicado. Normalmente o escritor participa do processo de roteirização de sua obra para o palco de um teatro, ou para as telas do cinema, televisão ou serviço de streaming, compatíveis com diversas formas de transmissão digitais.

    Um caso que vem na contramão dessa tendência é o de Gabriel García Márquez que, embora fosse um incentivador de criações audiovisuais, sempre recusou propostas de transformar uma de suas maiores criações, “Cem anos de Solidão”, em filme. Ele dizia querer se comunicar diretamente com os leitores através das letras, que assim poderiam criar os personagens em sua mente como quisessem, sem que a imagem de qualquer ator lhes fosse imposta.

    Ainda que não tenham caído em domínio público, os próprios herdeiros de Gabo desconsideraram sua opinião a esse respeito e venderam os direitos do livro para a NetFlix. O filme já tem trailer disponível e está para estrear em breve na plataforma.

    Uma segunda determinação do autor colombiano também foi descumprida pelos detentores atuais de seus direitos, no mês passado, quando foi publicado o romance “Em agosto nos vemos”, obra inédita que ele havia dito que “não prestava” e que “deveria ser destruída”. Alegando que ele havia sido muito severo em sua avaliação sobre o livro, os herdeiros novamente o contrariaram “em nome do prazer dos leitores”. Quando se consulta o título na plataforma da Amazon, após uma breve sinopse, aparece a seguinte frase: “Um presente inesperado do Prêmio Nobel de Literatura para o mundo”. Se foi contra a sua vontade, não foi um presente dele e sim de seus herdeiros.

    Como leitores podemos comemorar que o editor de Franz Kafka não tenha levado a sério sua determinação expressa de queimar seus manuscritos após sua morte. Do contrário, nós nunca teríamos tido a oportunidade de ler “O processo”, “O Castelo” e “Carta ao Pai”. Teria sido uma jogada de marketing póstuma? Nunca saberemos.

    A verdade é que sempre que estamos na posição de leitores e não de escritores, torcemos para que qualquer trabalho inédito de um autor que admiramos, e que já não está mais entre nós, seja publicado, para que possamos ter acesso a ele novamente. Além disso, cada vez que se traz uma obra do passado com uma nova linguagem, um novo formato, uma “cara nova”, levamos esse rico conteúdo a jovens, a pessoas que provavelmente nem tiveram a oportunidade de conhecer o autor e ou sequer saibam quão grandioso ele foi.

    Numa análise mais profunda, chegamos à conclusão que a partir do momento que uma obra é criada e exposta, seu autor não perde imediatamente os direitos autorais, mas perde o controle sobre o que ele produziu. Algo similar ao que acontece com nossos filhos, que criamos para o mundo.

    Tanto “Os filhos da Coruja” como “Em agosto nos vemos” já estão em minha lista para aquisição em breve, bem como não vejo a hora de assistir na NetFlix à versão nas telas de meu livro predileto, “Cem anos de solidão”. Graciliano Ramos e Gabriel García Márquez que me perdoem de onde estiverem. Meu desejo de conhece-las é, em primeiro lugar, em nome da profunda admiração que sinto por eles.

Dicas de artes comentadas durante o bate-papo:

Livros: Os filhos da Coruja – Graciliano Ramos; Em agosto nos vemos – Gabriel García Márquez; O processo, O Castelo e Carta ao Pai – Franz Kafka; Dom Casmurro – Machado de Assis

Filmes:

Adaptações de peças de Shakespeare para o cinema feitas por Kenneth Branagh (A primeira foi Henry V - 1989, seguida de Much Ado About Nothing - 1993, Hamlet - 1996, Love's Labour Lost - 2000 e As You Like It - 2006).

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Obs.: Texto criado com base em bate-papo por ocasião do XXIV Encontro de Escritores e Leitores, acontecido em 19/04/2024, no CME Adamastor.