Como declara
Fernando Pessoa em seu poema Autopsicografia, o poeta é um fingidor. Na
verdade, não apenas o poeta, bem como todo artista que cria uma obra fictícia,
seja ela escrita, encenada, declamada, pintada, esculpida etc. Mas exatamente
por ser fingimento, ela precisa parecer verdadeira. Precisa ser coerente dentro
do sistema proposto pelo autor.
Uma obra é a invenção de um mundo de quatro paredes. Se uma
dessas paredes é “quebrada”, ou seja, se algo no cenário, no diálogo, na letra ...,
não é verossímil perante o que foi criado, se um acontecimento não parece
possível de acordo com a sequência estabelecida, isso pode interferir,
negativamente, na integridade da obra.
Como se sente um telespectador atento que assiste a um filme
cuja história se passa no século XVIII e se depara com um tênis All Star (item
de vestuário que só foi inventado em 1971) no armário da rainha? Se antes acreditava
no que via, sente-se imediatamente deslocado da época encenada e trazido
abruptamente para um passado já não tão distante – quarta parede quebrada.
Como o leitor poderia acreditar em uma história supostamente
acontecida e narrada em 1916, se uma das personagens aparece dirigindo um Monza
(lançado nos anos 80), ou pior, se uma das cenas se passa na porta de uma sala
de TV (eletroeletrônico estreado oficialmente em 1926), ou ainda alguém é
descrito atendendo a um celular (invenção de 1973)?
A lista de incoerências encontradas por aí é extensa. Pode
ser em um poema, um romance, um filme, uma letra de música...
Não importa quão longe foi o autor em sua ficção. Basta que
ela seja coerente. “O planeta dos Macacos”,
por exemplo, foi uma criação sem furos e amarrada até o final. Realmente,
macacos não falam, e seres humanos não são escravizados por eles. Mas naquele
universo, isso faz todo o sentido.
Como exemplos de coerência e verossimilhança na literatura podemos
citar Machado de Assis, no conto "A Cartomante", e Guimarães Rosa, no
romance "Grande Sertão: Veredas". A estrutura narrativa nessas obras
prende o leitor e o leva a acreditar em um desfecho que se mostra
surpreendente, sem perder a coerência interna.
Portanto, a verossimilhança acontece em uma obra, por
essência, bem resolvida, independentemente de seu período, de Homero aos dias
atuais. Pois essa verdade interna de qualquer obra é algo que o autor deve
cuidar, zelar, para dar realidade, originalidade à sua invenção: se narrativa,
poema ou drama.
Há casos, porém, em que acontece quebra intencional da
“quarta parede”. Como no humor, nonsense... exemplicado pelos “The Monkees” e Monty
Python. Houve essa quebra também em “A Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen e
em Macunaíma, de Mario de Andrade. "O fabuloso destino de Amélie Poulain”,
do diretor Jean-Pierre Jeunet, mostra a personagem Amélie em suas fantasias,
quebrando a quarta parede de uma maneira surreal e incrível. O mesmo acontece
no livro "Memórias Póstumas de Brás Cubas" cujo o personagem central
é um "defunto-autor" que conversa com o leitor, enquanto narra sua
vida. E há também a pintura de René Magritte "A Traição das Imagens",
demostrando que a representação de algo (o cachimbo) não é necessariamente esse
algo... Como na música do Djavan sobre o universo e dinossauros – uma “viagem”
de estilo.
Obs.: Artigo
criado com base nas discussões em torno do tema do XIX Encontro de Escritores e
Leitores - "Verossimilhança, a invenção de realidades", pelo Google
Meet, 28/04/2023.
#verossimilhança;
#ficção; #quartaparede; #arte; #poesia; #música; #cinema; #literatura
"Verossimilhança: a invenção da realidade".
ResponderExcluirEste encontro foi como uma aula para mim,
através do bate papo, do compartilhar saberes pude ampliar meu conhecimento sobre o assunto e ver diferentes perspectivas sobre a verossimilhança na prosa e na poesia, das realidades fictícias transportadas para o universo do leitor.
Eita, encontro danado de bom !
Shirley Pereira
Que bom que gostou, minha amiga! Feliz que tenha participado.
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